quarta-feira, 8 de junho de 2011

O CRIME SEM CASTIGO DE DONA BARATINHA (OU UMA NOITE DE SOM E FÚRIA DO CRONISTA)

Dona Baratinha, o caralho! O inseto voador que entrara pelo basculante do banheiro, naquele fim de dia aziago e sombrio, me pareceu mais, tal o grau de raiva e de ira e  de desespero acumulados que sufocavam o meu peito não-mais-varonil, um boeing-da-Gol-desgovernado-na-selva-amazônica que pretendia aterrissar na minha cabeça em transe, e transformá-la em farofa de paçoca.

Era 17 de dezembro de 2010 na ex-capital federal. Dia da semana: sexta-feira. Hora: por volta de meia-noite. No apartamento a boreste, uma mulher parece gemer de dor; grita Para! Para! Pelo amor de Deus pára!; em seguida, inexplicavelmente, tudo volta a mergulhar em silêncio sepulcral.

(Não fora exatamente um dia bom para este cronista e, pelo que pude ouvir, também não o fora para a vizinha do apartamento a boreste, e, ok, provavelmente, também não o fora para boa parte dos outros sete milhões de terráqueos que habitam este vale-de-lágrimas-perdido-no-espaço-sideral. O horósocopo dizia, os e-mails diziam, o calor sufocante dizia, os não telefonemas diziam, os bem-te-vis que me acordam pela manhã diziam, o diabo a quatro dizia. Mas, mesmo assim, acordei. Fazer o quê? Mesmo asssim a vida pulsava, cazzo. Fui caminhar no Aterro do Flamengo, e, na sequência, deixei o rio seguir o curso - tipo let it be, tipo let it blood. Foi o meu erro. Deveria ter trancado todas as gavetas, ter me jogado dentro, e me fingido de morto. Mas não. Deu no que deu: horror, horror, horror).

Mais previsível que final-de telenovela-seja-de-qual-autor-for, não deu outra: assim que avistei aquela enoooorme barata voando em minha direção, resolvi: não seria também um bom dia para aquela criatura da ordem Blattaria que surgira do nada, e que, decretei, para o nada voltaria.

Ao contrário de alguns homens e da maioria das mulheres, não subo em cadeiras e sofás, ou emito gritos histéricos quando vejo baratas. Tenho certo nojo delas, é verdade. Mas não chego a odiá-las, a ponto de matá-las a sangue frio, como o fiz nesta noite de sexta-feira de canicular verão carioca. Na verdade, quando as avisto nas pistas do Aterro do Flamengo ou circulando lépidas e fagueiras por ruas e praças cariocas, evito pisá-las. Desvio-me desses insetos, e sigo em frente. (Viva e deixe viver: esta frase, aliás, poderia ser  o epitáfio do meu túmulo; fica a sugestão).

Mas naquelea noite aziaga de 17 de dezembro, aquela barata incauta e desavisada, talvez vinda de algum evento festivo com grupos de amigas (afinal era noite de sexta-feira), estava na hora e no lugar errados. Eu escovava freneticamente os dentes, como se quisesse limpar não apenas os dentes, mas também o corpo, a alma, e os cambau. Já cometia esse ato de autolimpeza dentária havia quase dez minutos, e, se essa barata invasora não entrasse em cena, talvez passasse o resto da noite escovando os dentes, o corpo, a alma, e, basicamente, os cambau.

A barata invasora invadiu o banheiro de forma algo atabalhoada. Talvez a luz forte em contraste com a noite escura de onde viera a tivesse cegado momentaneamente. Ou, quiçá, tenha saído de alguma farra homérica onde bebera todas e cheirara todas, e estava, como se dizia antigamente, pra de Bagdá. Sabe-se lá. O fato: fez voo rasante sobre a minha cabeça, e aterrissou, algo lânguida (o que legitimaria a tese de que haveria se drogado em algum boteco sórdido do Baixo Botafogo), a poucos centímetros dos meus pés. Olhei-a, inicialmente, com curiosidade: agitava freneticamente as antenas, como se quisesse descobrir desesperadamente onde diabos fora se meter.

Achei-a até simpática: tinha, diria, até algum glamour: ostentava lustroso corpo de tom marrom vivo e cintilante; e tinha asas firmes e longas. Por um momento (insano, admito) imaginei: talvez estivesse ali a centímetros dos meus pés a versão barata (com e sem trocadilho) da Cate Blanchett. Ou, mais provavelmente, da Lady Gaga. Mas, num átimo, o meu HD mudou inesperadamente de rota:  passei a rememorar todos as ocorrências e, principalmente, as não ocorrências do dia.

Aquilo deu nisso: transformei-me no mais cruel e sanguinário bandido do velho oeste. Ou melhor, do Baixo Botafogo.

Sem coldre, logo sem pistola no coldre, lembrei de máxima oportuna do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (´pensar de novo a cada nova situação´) e improvisei o ataque com o que estava ao alcance da mão. Arranquei a sandália havaiana verde do meu pé direito numa rapidez digna de Usain Bolt, a ponto de a barata invasora não ter nem tempo de rezar alguma oração para o santo de devoção por quem os sinos dela dobrariam (quem sabe não existiria, ou existirá, uma Nossa Senhora das Baratas e dos Grilos e das Moscas e dos Gafanhotos?).

Em questão de microssegundos, pude atestar para os devidos fins: as Havaianas, além de não soltarem as tiras, eram a arma perfeita para abater aquela barata invasora - e,  por tabela, todos os diabos, todos os recalques, todos os não telefonemas, todos os não e-mails, todos os nãos, enfim, daquele aziago 17 de dezembro de 2010.

Fulminei-a, sem dó nem piedade, com série interminável de chineladas. Foram tantas e tão raivosas, e tão impregnadas do pathos daquele deus-irado-do-velho-testamento, que, dessa sequência de incontáveis golpes, resultou o seguinte quadro: a) a barata virara ex-barata; submetida a tão inclementes e violentos golpes, o que antes fora inseto agora se pulverizara em quase invisíveis gotículas de pó e minúsculos fiapos.  b) empreguei tal força e tal velocidade no ato de pulverizar a barata invasora ( agora ex-barata-invasora) que o dedo apontador da minha mão direita doía terrivelmente ao final do embate, e ainda doeria bastante nos dias seguintes.

Embate finalizado, senti-me de alma lavada, e sem culpa alguma. Era como se a cada chinelada desferida naquela pobre e indefesa e incauta barata estivesse me livrando (enganosamente, admito) dos terríveis eventos e não eventos do dia. Lavei as mãos cuidadosamente. Voltei a escovar os dentes. Apaguei todas as luzes. Deitei a cabeça sobre o travesseiro 1. Abracei-me ao travesseiro 2 - e dormi com os anjos.

Não, não sou um monstro, caro leitor - mas também não sou de ferro.

3 comentários:

  1. Talvez a barata tenha servido ao seu propósito... Destino.

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  2. Adorei Rogério, dei risadas aqui com sua ação anti barata, rsrs pobre inseto indefeso, da próxima vez ela vai pensar 2x antes de dar esse vôo rasante para o suicídio,
    abraço!

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  3. Eu adorei Rogério!
    Vc escreve ótimamente legal , brincando e falando profundidade- cada um vai ver o q puder . Este é meu estilo de escrita também. Sou eterna aprendiz
    Não como animais e nem derivados mas
    barata viva? q nada! ahahahahahaha. E vejo nelas q também evolui nos meus enfrentamentos. ENTRAVA EM PÂNICO e chamava os porteiros pra me ajudarem ou até saia de casa quando apareciam. Depois de PNL , KAU ME EXORCISOU MESMO e passei a matá-las como se não fossem seres. . Dizem que sou radical mas com barata sou mesmo mal!!DEUS FEZ QUASE TUDO CERTO
    Quero ler outras coisas q vc escreve. vc poderia enviar pra meu e mail alguma coisa legal? saudedoser@saudedoser.com.br ou cole no meu mural do FACE um link - êrta! viva a modernidade . olhe a linguagem d esta jade ! obrigada eu a dorei sua história do dia da barata Angela Sampaio

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