sábado, 14 de maio de 2011

OS DIAS DE CÃO DE ROGELI SOUZA NAS RUAS, TERMINALES E PENSIONES DE ROMA

Túnel do tempo: voltemos a dezembro de 1988. Ainda meio zonzo com os efeitos da ´movida madrileña´ (regada a desenfreada agitação cultural e sexual), eu  buscava, desesperadamente. o balcão das Aerolíneas Argentinas, no Aeroporto de Barajas. Depois do êxtase dionisíaco que Madri havia me proporcionado por quase dois meses,  ansiava por ocorrências ainda mais insólitas em Roma, a cidade que visitaria a seguir, a cidade eterna, a cidade aberta de Roberto Rosselini.

Superlotava-me de (boas) expectativas: internamente, tal e qual deslumbrada cobrinha multicor, saltitava de alegria; mas, externamente, mantinha a pose blasé: tentava transparecer nervosismo-algum, como se já tivesse feito aquele voo Madri-Roma trocentas vezes. Mas estava superatrasado, e a porra do balcão das Aerolíneas Argentinas parecia ter se evaporado, sumido do mapa.

Foi quando tive de sair do personagem-contumaz-passageiro-da-ponte-aérea-Madri-Roma: em quase desespero, perguntei a peruíssima senhora que esbarrou em mim, a ponto de quase me nocautear com a quantidade colossal de perfume que usava (J´adore? Mas já fabricavam J´adore àquela época?). Ela ostentava cabelos e trajes em tons variados de cor de abóbora. Desculpou-se com voz de pato Donald, e a indaguei, aflitíssimo, num idioma, digamos, cinicamente globalizado:  - Vuelo para Roma. Aerolíneas Argentinas. Per favore. Donde? Disparou-me olhar misto de piedade e menosprezo, e, simplesmente, levantou o dedo indicador, em cuja ponta brilhava esmalte também cor de abóbora, e sussurrou, num idioma, digamos, cinicamente globalizado: - Acá, señor. Por acaso és cego? E partiu.

Respirei aliviado, e me juntei a fila caótica que disputava o cartão de embarque a cotoveladas e gritos em altos decibéis. Finalmente consegui chegar  em frente a esplêndida mocetona, ruivíssima, com peitos à Jane Mansfield. Ela olhava, desconfiada, para minha cabeleira (ainda) glauberiana. Mas demonstrou eficiência, conferiu meus documentos com agilidade e rapidez, despachou minha mochila ultragasta, e, em questão de segundos, me entregou o cartão de embarque, e me despachou com a seguinte frase: - Bon Vuelo, señora Rogeli Souza!

Pensei ter ouvido algo que realmente não ouvira (ecos talvez dos dioniosíacos e homéricos porres madrilenhos?), e fui em frente. Mas, ao sentar-me para livrar-me um pouco desses momentos de estresse, sentei-me para rápido café: ao olhar, displicentemente, para o cartão de embarque, entendi a frase dita pela funcionária ruivíssima e com peitos à Jane Mansfield. Estava lá com todas as letras, no nome do passageiro: Rogeli Souza.

Quase entrei em pânico. Mas, aos poucos, graças às duas xícaras de café e aos dois Dramins que engolira gulosamente, fez-se luz: a) o Rogeli advinha de Rogelio, como o nome Rogério é usado na Espanha (com, deduzi, o o final engolido). b) o Souza era o meu sobrenome materno (na pia batismal ungiram-me Rogério Reis de Souza Menezes), e os espanhóis adotam como oficial o sobrenome materno.

Tudo esclarecido, tudo resolvido, afinal Rogeli Souza partia para idílica visita a Roma, a cidade eterna, a cidade aberta de Roberto Rossellini, a cidade onde o céu seria o limite. Certo, caro leitor? Errado, caro leitor. Para mim e, por tabela, para Rogeli Souza, o inferno apenas começava.

No controle de passageiros estrangeiros do aeroporto de Fiumicino, meus cabelos glauberianos e meus trajes em tons riponga-perdido-no-tempo chamaram mais atenção do que a-mulher-toda-em-cor-de-abóbora que estava à minha frente, a qual pensei, e pensei erradamente, eclipsaria totalmente a minha humilde figura. Mas não. A-mulher-toda-em-cor-de-abóbora saudou efusivamente os agentes de imigração e passou incólume, lépida e fagueira. Eu não.

Puxaram-me para canto do grande salão, depois me levaram para sala menor. Perguntaram-me de onde vinha. Do Brasil, falei, e eles riram um sorriso sacana e debochado e cínico. Quiseram sabe para onde eu ia (disse que voltaria, em uma semana, para, menti, Madri). Fizeram-me de gato e sapato, e, quando perceberam que não tinha a passagem aérea de volta em mãos (na verdade, a ideia era voltar de trem para Barcelona), o pau comeu e a coruja piou: a) enfiaram a mão na mnha bunda; b) perguntaram pelas drogas que carregava na mochilla ou enfiado no culo; c) deram alguns puxões na minha cabeleira,  àquela altura mais glauberiana do que nunca; d) submeteram-me a alguns sopapos. e) só depois de examinar cada parte do meu corpo (e quase me excitei quando certo agente bem apessoado, que, de certa forma me fez lembrar o totêmico Giulianno Gemma, apalpou a minha genitália,  como se tivesse feito isso durante a vida inteira), me liberaram. f) Empurraram-me para fora da sala, e esbravejaram:  - Brasiliano de mierda!

Mais perdido do que cego em tiroteio, tentei avançar. Repeti-me, feito mantra: - Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Daqui-pra-frente-tudo-vai-ser-diferente. Ainda me restava, pensava, o lar cálido da amiga querida Luilda Guglielmi, que me acolheria em família logo depois desses tormentos inesperados. Mas não foi exatamente assim, caro leitor. Foi exatamente assim, caro leitor: utilizando um telefone público, no qual levei alguns minutos para acertar o buraco no qual devia enfiar a moeda de 1000 liras que me permitiria fazer ligação local, ouvi do outro lado da linha a seguinte e péssima notícia: - Non, a Luilda non está. A minha filha viajou para o Brasil e só ritorna próximo ano! E não deixou nenhuma mensagem falando de nenhum amigo brasileiro. Arrivederci!

O pai de Luilda Guglielmi bateu o telefone na minha cara. Ato contínuo, depois de xingar a minha amiga italiana que jurara que estaria em Roma e que poderia me hospedar quanto tempo quisesse, quis morrer, quis me imolar em praça pública, quis tomar formicida tatu com guaraná antárctica. Mas o meu lado A preponderou sobre o lado B, pensei em Scarlet O´Hara, no final de ... E o Vento Levou, e delirei: - Essas dificuldades iniciais na verdade me auguram bons momentos. Passarei dias felizes em Roma!

Ledo, ivo, e nagle, engano, querido leitor. Deveria ter invadido o primeiro avião de ida para qualquer lugar do mundo, e escafeder-me dali imediatamente. Não o fiz. Azar o meu: cumpri o carma que me cabia cumprir naquele exato momento de minha vida - e percorri o seguinte calvário, a seguinte via-sacra:

Primeira estação: ao constatar que não havia nenhuma casa de Luilda Guglielmi que me hospedaria em Roma, decidi pegar algum ônibus que me levasse até a região central da cidade, e lá descobrir módica pensione onde pudesse esticar a minha carcaça cansada. Depois de alguns diálogos de surdos com algumas pessoas (aos poucos, fui percebendo que o italiano fluente e corrido falado pelos romanos me soava tão latino quando o alemão ou o polonês ou o sueco), consegui deduzir: havia ônibus que me levaria até a região do Terminale (centro da cidade onde poderia encontrar muitas pensiones); e também consegui descobrir o guichê onde tais passagens podiam ser compradas.

Dirigi-me a esse guichê, e, depois de infindável fila, me vi frente a frente com italiano mal encarado, cara de parvo, magérrrimo, com covas profundas nas faces, e olhos de corvo velho, que me olhou com olhar intimidador. Gelei, mas balbuciei:
- Ticket pro Terminale. Ele não deve ter entendido patavina do que falei, mas como aquela era fila na qal se vendiam passagens apenas para a linha Fiumicino-Terminale, jogou sobre o balcão bilhete de cor marrom, e voltou a me encarar com raiva.

Então lhe perguntei quanto custava a passagem. Mas ele disse, seguidamente, o preço da passagem de maneira tão displicente e tão acelerada, que nunca conseguia entender o quanto custava a porra do valor da passagem. Resultado: repetia-lhe, seguidas vezes: - Quanto? Quanto? Quanto? (Enquanto isso, a fila de italianos que queriam também comprar bilhetes, crescia, crescia, e crescia).

O bilheteiro perdeu afinal a paciência, e urrou, repetidaamente, e cada vez com o tom de voz mais exaagerado, com todas as sobras de vida que ainda lhe restavam: - CINCO MILLE LIRA!  CINCO MILLE LIRA! CINCO MILLE LIRA, CAZZO!

Atirei a nota de cinco de mil liras sobre o balcão, e escafedi-me.

Segunda estação: Ao descer no Terminale, e abordar pessoas com única e fundamental pergunta (Pensione? Pensione? Pensione?),  ouvi as mais disparatadas respostas, e que me levariam a um caminho sem fim. Resolvi então descobrirr  a pensione onde me hospedaria por conta própria. De repente, vejo à minha direita, num prédio não exatamente convidativo (mas, àquela altura do meu romano calvário, qualquer espelunca de quinta me pareceria o Ritz de Paris), a seguinte placa: PENSIONE - 4.

Adentrei o recinto, que recendia a cheiros infectos; apertei o botão do elevador; alguns minutos depois se abriu gaiola pantográfica na qual entrei como se entrasse na garganta do diabo. Apertei o número 4. Mas o elevador parou no 2 - e percebi (pelo gingado da senhora gorducha que me recebeu à porta; e se podia ouvir ao fundo Ornella Vanoni cantando Abbracciame Forte,  e, também, clamores de cacarejos femininos irenéticos e lascivos) que naquele andar se localizava bordel e não a minha ansiada pensione.

A cafetina gorducha me puxou pelo braço, e senti-lhe o hálito que recendia a vagabundo e salame rançoso. Resisti ao assédio, e quase gritei: - PROCURO A PENSIONE! PENSIONE, CARALHO!

A cafetina gorducha, inconformada com a minha ideia fixa de encontrar uma pensione, e não um bordel, empurrou-me no elevador, apertou o número 4 do elevador, vociferou palavra não identificada em italiano, certamente cruento xingamento, e me bateu a porta na cara.

Terceira estação: finalmente, aleluia!, a ansiada pensione surgia diante dos meus olhos cansados. Fui recebido por mulher que parecia gêmea (e talvez fosse) da cafetina gorducha do segundo andar, só que sem maquiagem, e trajando roupas sóbrias, e ostentando certo ar de mamma (provavelmente resultado de muito ensaio), e um nome, digamos, quase sacral: Francesca.

O nosso diálogo de surdos (não entendia quase nada do que dona Francesa falava) teve final quase feliz. Eu me fiz compreender: queria quarto com macia cama de casal. Ela falou algo sobre banho, que não consegui decifrar exatamente. E empacamos diante do seguinte enigma: - Domani ou Domenica? - perguntava-me. Naquele estado de exaltação, era como se me perguntassem:
- Melancia ou melancia?  Encurralado, mentalizei um joguinho de cara e coroa, e arrisquei: - Domani.

Entrei no quarto, caí na cama desmaiado, e dormi o sono dos deuses. Fui acordado às 12 horas da manhã do dia seguinte com murros na porta. Dona Francesa gritava, a plenos pulmões: - Brasiliano, brasiliano. O tempo é finito!

Levantei desarvorado. Encontrei dona Francessa possessa. Falava aos berros, e, acordando aos poucos, pude perceber: urrava que o meu tempo de permanência na pensione havia acabado. Como assim? Falei em português: - Ficarei até domingo. Ela retrucou, cheia de empáfia: - Até domenica então, brasiliano,e não até domani, oggi, certo? (Ela voltou aos seus afazeres e eu, a dormir, e sonhar com Gina Lollobrigida fazendo oral em Franco Nero; e vice-versa).

(Nos três dias seguintes, parecia que o inferno astral tinha passado; verdade que, uma ou duas vezes, flagrei rapazes e moças injetando heroína nas veias nas escadas do prédio; normal, pensei. Pude então caminhar por cidade belíssima, visitei o Vaticano - descarada e brutal celebração de luxúria; e virei freguês diário do McDonalds (tentei comer nos restaurantes nativos, mas sempre pedia o prato errado); visitei o coliseu, flanei pelo Trastevere. Tudo parecia sonho de infância que se realizava. Até que...)

Quarta estação: dezembro em Roma, pleno inverno, o dia amanhecia às dez, e só acorrdava por volta do meio-dia. Acordo novamente com esmurrar de portas. Acordo gritando:  - Porra. Será que é a puta da dona Francesca me dizendo que hoje já é domenica? Mas domenica é só depois de amanhâ, caralho!

Mas a voz que ouço é grave e ameaçadora: - La polizia! La polizia!

Ficquei apavaorado. Pensei em me jogar pela janela e sumir na neve que começava a se formar lá fora. Mas os murros eram cada vez mais fortes. Concluí, sem dúvida alguma: - É o fim. Me fodi. Que porra vim fazer nessa merda de Roma?

Abri a porta. Entraram quatro ou cnco policiais.  Um deles me imobilizou no canto da parede. Digo que sou brasiliano, e eles começam a falar em francês comigo, e o diálogo entre surdos fica mais caótico ainda. Mexem em tudo. Não acham nada. Pedem o meu passaporte. Perguntam quando vou embora. Digo, agora sem pestanejar: - Domani. Eles vão embora; deixaram todas as minhas roupas sobre o chão. Senti vontade de chorar, e chorei. Foi quando dona Francesa, a bordo de pathos maternal, apareceu, acariciou-me os glauberianos cabelos, e disse, em italiano, mas, milagrosamente, ouvi tudo em português: - Não fique assim. Isso acontece todo dia. Essa região é muito perigosa. Ocorre muito tráfico de droga por essas ruas, meu filho!.

Quinta estação. Finalmente é domenica. Hora de partir. Pedi a conta a Dona Francesa, que me exibiu conta exorbitante. A diária combinada era 20 mil liras diárias e li naquele papel que devo pagar, em vez de 140 mil liras, 420 mil liras. Suspirei profundamente, e novamente novo diálogo de surdos se processou. Resumo da ópera: quando havia chegado, naquele momento em que ouvi vagamente a palavra banho, ela havia me dito que os banhos eram cobrados à parte. O quarto custava 20 mil liras. O banho, 40 mil liras cada.

Resignei-me (e jurei que começaria curso de italiano assim que voltasse ao Brasil). Paguei a conta que me deixou quase na miséria e parti..

Última estação: a de embarque. Eu, Rogério Reis de Souza Menezes (não mais Rogeli Souza, esse nome amaldiçoado que aquela funcionária peituda à Jane Mansfield do Aertoporto de Barajas, em Madri, colou em mim) peguei o trem para Barcelona, sem sequer olhar para trás.


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2 comentários:

  1. rogério, que odisséia sua viagem para roma!!! mamma mia!!!!

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  2. uma das coisas boas das viagens são as lembranças que elas deixam, mesmo as péssimas. viram histórias.

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