domingo, 22 de maio de 2011

COMÉDIAS DA MORTE PRIVADA (OU DO MUNDO NADA SE LEVA)

História 1

Local: redação da Tribuna da Bahia; manhã de outubro de 1982. Ânimo geral: agitação, alvoroço; mais exatamente: adrenalina pura. Motivo desse superlativo, digamos, tititi: travam-se discussões acirradas sobre como registrar, com todas as nuanças e detalhes possíveis, nas páginas do jornal do dia seguinte a grande tragédia da tarde anterior: acidente aéreo matara treze políticos  baianos, entre eles, Clériston Andrade, então candidato ao governo da Bahia. O chefe de reportagem, a bordo de púlpito improvisado, talvez a própria mesa de trabalho, brada, enfático, como se de nós, pobres e mal pagos repórteres de pequeno jornal de província, dependesse a salvação da raça humana de  hiperataque de forças alienígenas. Determinado, e conhecedor do que cada um de nós sabíamos fazer de melhor, escalava sem titubear:  - Fulano faz isso, Beltrano faz aquilo, Sicrano faz aquilo outro.

Na minha vez, ele, sempre à guisa de general escalando tropa para entrar em combate, vocifera: - Você é bom nessa coisa de fazer perfis, de descobrir boas histórias. Então sua missão, curto e grosso, é a seguinte: - Cola na viúva do candidato! Entendeu? Vão estar lá outras doze viúvas, mas você não vai estar nem aí para elas, a viúva que vai lhe interessar é a viúva de Clériton Andrade, entendeu? Se a viúva de Clériston Andrade entrar no banheiro pra fazer xixi, você entra no banheiro atrás dela. Cola na viúva! Entendeu, ou quer que eu desenhe?

Não, não precisava desenhar, havia entendido tudo muito direitinho. Resultado: nas cenas seguintes, primeiro, no velório no Palácio da Aclamação, depois, no translado do corpo-do-candidato-à-governança-estadual-que-falecera-tragicamente em carro do corpo de bombeiros, e, finalmente, no Cemitério do Campo Santo, me tornei a sombra incansável da viúva Ceci Andrade. Aplicadíssimo, caneta Bic e bloquinho improvisado a partir de folhas de papeis de pauta (nas quais também datilografávamos nossas reportagens) na mão, observava tudo, e anotava tudo. Rabiscava frases assim: ´a viúva assoou o nariz com lenço de linho branco´; `a viúva teve crise de choro ao abraçar um dos filhos´. Enfim, escrevia tudo  o que via e ouvia - e escrevia tudo o que via e ouvia numa letra que só eu entenderia depois; ou não, e então apelava para a velha e (ainda; afinal, tinha 20 e poucos anos anos) boa memória.

De início, Dona Ceci Andrade estranhou a minha figura tão próxima dela, literalmente colada nela, mesmo que usasse como arma  apenas caneta Bic quase sem tinta e bloquinho improvisado. Antes que pensasse que fosse algum tarado ou algum maníaco-que-perseguisse-viúvas-recentes, lhe cochichei, na maior cara de pau (repórter que não for cara de pau morre de fome): - Sou jornalista e minha missão é ir aonde a senhora for, seja aonde for.  Ela me olhou com cara assustada. Depois voltou a chorar. Mas fomos em frente. Senti-lhe a respiração ofegante e emocionada, quando se debruçou sobre o caixão do marido morto, e chorou. Registrei-lhe o rosto e os braços cobertos de suor quando, já a bordo do caminhão do Corpo de Bombeiros, sob o sol cáustico de Salvador, permanecia em vigília ao lado do corpo do marido. Enfim, cumpria a minha missão: colei-me na viúva.

O pior estaria por vir. Da entrada do cemitério até o local do sepultamento, massa humana de dimensões notáveis nos cercou, o que fez com que eu e Dona Ceci Andrade nos tornássemos, digamos, mais íntimos ainda. Mas seria poucos metros depois, à beira da sepultura recém-cavada no chão, onde o corpo de Clériston Andrade seria enterrado, que  pororoca humana de proporções amazônicas se deu. De um lado: Dona Ceci, eu, parentes, amigos, e combativos cordões de puxa-sacos. De outro: o rotundo Antonio Carlos Magalhães, o então imperial e todo-poderoso governador da Bahia, acompanhado de quatro ou cinco espadaúdos seguranças, parentes, amigos e combativos cordões de puxa-sacos.

Nesse exato momento pensei que perderia o prumo, e não conseguiria continuar colado à Dona Ceci Andrade até ao final da cerimônia. Braços e mãos e pés diversos me empurravam em várias direções, mas resisti. Mantive-me firme (e ainda anotando tudo com a canetinha Bic no bloquinho improvisado) e forte. Quando Dom Antonio Carlos Magalhães e Dona Ceci Andrade se abraçaram emocionados e choraram a cântaros, estava tão colado neles que pude ver em superclose a suada e monumental papada do  governador se chocar contra a testa suada da viúva, e pude ouvir o seguinte diálogo (e, neste exato momentos, ossos do ofício, algumas gotas das salivas emocionadas de ambos respingaram em mim):
Ele - Seu marido era um grande homem. A Bahia perdeu um grande homem! 
Ela: - Obrigada, senhor governador, obrigada.

Coisas da vida (ou da morte?): nesse momento em que clima de absoluta emoção pairava sobre os circunstantes, em que até os seguranças de ACM choravam, e, se duvidarem, também eu chorava, um deus ex-machina-algo-irreverente introduziu elemento inesperado em cena. Um fétido cheiro de ovo podre, ou de seja-lá-o-que-fosse-podre, emanou do meio de nós como um vulcão invisível, mas fedorentíssimo. Em outras palavras: perdão leitor, alguém peidou. Juro: não fui eu. Teria sido Dom Antonio Carlos Magalhães? Teria sido Dona Ceci Andrade? Ou um daqueles cinco espadaúdos seguranças que nos rodeavam?

Não coloquei essa escatológica ocorrência na reportagen que escrevi na Tribuna da Bahia, e que foi muito elogiada pelo meu chefe de reportagem, que me enalteceu com as seguintes palavras: - Você, meu querido, não apenas colou na viúva; diria mesmo que você se colocou no corpo a e na alma da víuva.

Mas vou lhe contar um segredo, caro leitor: meio assim como um quem-matou-odete-roitman-particular, de vez em quando volto a me perguntar: afinal quem teria peidado naquele momento solene à beira da cova do finado Clériston Andrade?

História 2

Local: redação da Folha da Tarde, mais exatamente da editoria de Variedades, São Paulo. Estamos em 1988. Estado de ânimo dos circunstantes: certo tédio. Parecia ser daqueles dias no qual se pode ter a (falsa) impressão de que nada acontece no mundo do show business e do não show business. Quando isso ocorria, nós repórteres tremíamos: significava que o chefe (no caso, a chefe) de reportagem nos mandaria apurar assuntos frios, banais, desinteressantes, enfim qualquer bobagem que lhe passasse pela cabeça. .

De repente, após telefonema recebido, certo ar de felicidade estampou-se no rosto da chefe de reportagem, e ela me convocou, e discursou:- Seguinte: simplesmente morreu Miroel da Silveira, um dos mais importantes críticos de teatro do Brasil O corpo dele está sendo velado na Capela do Hospital Samaritano, em Higienópolis. Vá pra lá correndo. Todos os mais importantes artistas do teatro de São Paulo e do Rio de Janeiro devem estar lá, e quero que você obtenha depoimentos emocionados, emocionados, entendeu bem?, desses artistas todos. Siga pra lá imediatamente. Não é longe daqui, pegue o dinheiro do táxi com a secretária, e me traga uma matéria sensacional, sensacional, certo?

Peguei o dinheiro do táxi, mas segui até à capela do Hospital Samaritano, em Higienópolis, a pé. No caminho, pensava na merda de pauta que a puta da chefe de reportagem havia me passado, simplesmente para botar alguém do time de repórteres dela na rua (chefes de reportagem têm trauma de deixar repórter sem fazer nada; quando isso acontece, as instâncias superiores costumam lhes rotular de incompetentes). Ok, sabia (e sei): Miroel Silveira havia sido crítico teatral importante, fundamental para o teatro brasileiro, mas duvidava muito que a morte dele provocasse comoção tal a ponto de os mais importantes artistas brasileiros estarem no velório dele àquela hora da tarde de inclemente calor paulistano.

Mas fui. Ao adentrar a capela do Hospital Samaritano, verifiquei:  realmente havia na parte central da pequena igreja caixão cercado por castiçais de velas e muitas coroas de flores - e mais ninguém. Não havia viva alma ao redor. Aproximei-me para checar se aquele morto solitário era realmente o crítico teatral importante que a chefe de reportagem havia me falado.  Não adiantou muito: havia realmente homem morto dentro do caixão, mas como nunca havia visto Miroel Silveira, pessoalmente ou em fotografia, aquele homem morto ao meu lado poderia ser, de fato, um-dos-críticos-teatrais-mais-importantes-do-país, mas poderia ser, também, sabe-se lá, um Jacob-das-Couves qualquer que morasse no bairro.

A situação era absolutamente insólita: naquele silencioso salão apenas eu e um caixão, cujo ocupante eu não tinha certeza quem era, mas que minha chefe de reportagem garantira que era Miroel Silveira. Por quase uma hora  permaneci  naquela situação quase beckettiana, com agravante: eu não sabia que porra estava esperando; e, muito menos, por que a porra da minha chefe de reportagem me pôs naquela fria. Quase surtado, de repente me veio à idéia, já que nenhum outro circunstante famoso ou não comparecera: entrevistar o próprio morto, e a minha primeira pergunta, claro, seria: - O senhor é mesmo Miroel Silveira, cara-pálida?.

Antes que cometesse tal insanidade, entraram no local duas senhoras vestidas em vaporosos vestidos negros. Olharam-me com desprezo (tudo bem; com o tempo, nós, repórteres, ossos do ofício, aprendemos a enfrentar olhares de desprezo). Mas fizeram pelo menos a caridade de identificar o homem que eu velara solitariamente por mais de uma hora. Uma delas, a mais gorducha, bradou em prantos, enquanto se debruçava  sobre o esquife: - Miroel, Miroel!

Presumi: seriam parentes do morto, e não achei de bom-tom, nem sintoma de vida inteligente, perguntar-lhes algo a respeito do morto célebre. Fiquei, respeitosamente, mais algum tempo no local, e como nem Regina Duarte nem Paulo Autran nem Fernanda Montenegro (como minha chefe de reportagem garantira) apareceram, piquei a minha mula. Voltei frustrado à redação, novamente a pé, e me perguntando: por que diabos eu e o cadáver de Miroel Silveira tivemos que ficar sozinhos numa capela durante mais de uma hora no meio de uma tarde quente paulistana dos anos 1980?

História 3

Dois anos antes: 1986. O chefe de reportagem era outro. Mas era o mesmo jornal, a mesma editoria de Variedades, a mesma tarde sem grandes ocorrências culturais, e o mesmo pequeno exército de repórteres enfileirados, todos ansiosos por saber o que vamos cobrir. Olhamo-nos de maneira cúmplice, e percebemos: o nosso chefe de reportagem demonstrava sinais de nervosisimo intenso, o que atestava para os devidos fins: essa era uma daquelas tardes entediantes que teríamos que fazer a pauta que o mestre mandar, seja lá que merda fosse.

De repente, o chefe me chamou, e disparou: - O ator Emile Eddé morreu! Levei algum tempo para ligar o nome à pessoa, mas finalmente lembrei: era um ator boa-praça, que trabalhava em teatro, tevê e publicidade, não exatamente um Paulo-Autran, mas um ser humano bacana, enfim.. A missão a mim destinada: - Você vai pegar o telefone e repercutir a morte dele, escutar opiniões a respeito da importância dele para o teatro paulistano.

Tive ganas de esganá-lo. Não existe nada mais execrável no jornalismo do que ficar ligando para artistas e celebridades pedindo opiniões sobre alguém que acaba de morrer (e essa prática execrável continua sendo exercida até hoje). Mas respirei fundo, contei até dez, e fui cumprir minha missão. Primeira tarefa: descobrir artistas que conhecessem o ator, não tão célebre assim. Penalizados, alguns colegas me ajudaram, e, ao final, consegui lista de dez a quinze telefones de pessoas  que, provavelmente, poderiam dar alguma opinião sobre o falecido.

Fiz sete ou oito ligações (os entrevistados falaram o óbvio, ele era ´genial´, ínovador´, ´excelente ser humano´, coisas elementares assim. Alguém atendeu e disse que não tinha a menor ideia de quem se tratava.

Mas foi o diálogo ocorrido na ligação seguinte que me marcou para sempre. Ei-lo:
- Alô, boa tarde, eu sou repórter do jornal Folha da Tarde.
- Alô, boa tarde! Do que se trata?
- A senhora foi amiga do ator Emile Eddé?
- Fui,  não. Sou. Ele é uma pessoa maravilhosa.
- Estamos repercutindo a morte dele. O que a senhora achava do trabalho dele como at...

Não consegui concluir a frase. Apenas ouvi grito estridente do outro lado da linha, e uma voz de mulher que gritava:
- Mamãe, mamãe, o Emile Eddé morreu! Morreu!

Desce o pano.

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