quarta-feira, 4 de maio de 2011

O ENCONTRO DE ODETE LARA & CATHERINE DENEUVE (OU O TEMPO, O TEMPO, O TEMPO)

Uma de minhas mil e uma obsessões: especular as motivações que fazem, no frenesi caótico da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, por exemplo, nossos cotovelos baterem, tocarem, de repente, ocasionalmente, nos cotovelos de outrem. E mais: que esse ocasional roçar de peles talvez seja o único encontro que teremos com essa inesperada pessoa em toda a nossa caudalosa e longeva (se for o caso) existência.  Ou não. (Talvez possamos encontrar essa pessoa ocasional em outro momento de nossas vidas, e essa pessoa ocasional se transformar em alguém fundamental nas nossas vidas. Ou não.).

Uma de minhas mil e uma desilusões: jamais, mesmo que vivamos mil anos, iremos decifrar essa emigmática charada que alguns atribuem ao acaso. Outros, ao destino. E que este cronista, em momentos de maior desvario, prefere atribuir  a algum deus bêbado que mexe um tabuleiro de xadrez (nosotros) como se mexesse a bunda da mulata bossa nova que caiu no hully gully.

(Corte).

Cena 1:
Cine Capri. Praça Inocêncio Galvão, também conhecida como Largo Dois de Julho, Salvador Bahia. Tarde/noite qualquer dos anos 1970, talvez 1974. Entediado com as tardes vazias, troco, sem pestanejar, a solaridade malemolente dos trópicos  pelo escurinho do cinema. Sentado nas últimas fileiras, como sempre o fazia, contemplo, contritamente, talvez pela duodécima vez a trajetória existencial de bela mulher loira que troca a vida burguesa de suas tardes também vazias pela possibilidade de foder com o homem que bem quisesse e  entendesse. A personagem se chama Severine. A atriz que a interpreta, Catherine Deneuve. O filme: A Bela da Tarde (Belle du Jour), dirigido por Luis Buñuel.  Numa palavra: êxtase.

(Corte)

Cena 2:
Porta de saída de avião da Air France recém-chegado de Paris. Aeroporto do Galeão. Rio de Janeiro. Em torno das cinco horas da manhã de um dia qualquer dos anos 1990, talvez 1993.. Depois de compactar-me por doze horas seguidas num assento ordinário da classe econômica, a escala carioca (antes de o avião seguir para São Paulo, meu destino final) me parece o mais abençoado dos bálsamos. Ainda assim, sentado na parte central da aeronave, deixo passar o resto da manada, e sou um dos últimos a sair. É exatamente esse fragmento de tempo de espera que me propicia o seguinte, e inesquecível, momento de deleite: ao adentrar naquele tubo que nos leva ao portão de desembarque, olho para trás, e vejo ninguém menos que Catherine Deneuve.
Ela me olha, belíssima, e sussurra: - Bonjour.
Penso em desmaiar, mas nunca aprendi a praticá-lo. Demonstro profissionalismo extremo, e replico: - Bonjour.
E foi só.
Depois 1: vejo-a de longe no free shop tomando café; estava acompanhado de homem que não consegui identificar.
Depois 2:  leio nos jornais paulistanos que a atriz francesa estava seguindo para Buenos Aires.
Depois 3: penso, bestamente, que, se aquele avião tivesse caído na vastidão do Oceano Atlântico, eu e Catherine Deneuve teríamos morridos juntos.

(Corte)

Cena 3:
Cine Liceu. Rua Guedes de Brito, ao lado da Praça da Sé. Centro de Salvador. Tarde/noite qualquer dos anos 1970, talvez 1973. Entediado com as tardes vazias, troco, sem pestanejar, a solaridade malemolente dos trópicos  pelo escurinho do cinema. Sentado nas últimas fileiras, como sempre o fazia, contemplo, contritamente, talvez pela duodécima vez, o mais retumbante dos filmes de Glauber Rocha: O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. E, nesse mais retumbante dos filmes de Glauber Rocha, o momento que mais me arrebata  é a cena em que a atriz Odete Lara, a bordo de vestido roxo translúcido (a ponto de revelar-lhe os belíssimos seios, rijos e entumescidos) surge, com a força de um vulcão incandescente, na janela de pobre casebre das brenhas do sertão baiano. Numa palavra: êxtase.

(Corte)

Cena 4:
Livraria Blooks. Anexo aos cinemas Unibanco Arteplex. Praia do Botafogo. Rio de Janeiro. Em torno das 17 horas de tarde qualquer do final de abril de 2011. Levanto os olhos do estande de livros no qual procuro certo romance do autor inglês Ian McEwan, e deparo com o olhar agudo de simpática senhora. Olha-me como se não me visse, e segue em direção a certa prateleira, na quall retira o exemplar de livro que não consigo identificar. Depois senta-se, sem pressa alguma, em grande mesa de leitura. Algo no meu cérebro dispara e me sugere insistentemente: eu já vira aquela senhora antes. Mas onde? Quando?
No momento em que passo no caixa para pagar o recém-comprado exemplar de Reparação, a luz se faz. Aquela senhora de 82 anos (nascida em 17 de abril de 1929, como soube depois  no Google), ali pertinho de mim, e que parece versão mais esbelta e mais loura de minha avó materna (morta quando eu era jovem petiz) é ninguém menos que Odete Lara.
Meu coração dispara. Penso em lhe assediar e, agora quando mais nenhum sinal de sensualidade aparente lhe arrebata, penso também em beijar-lhe respeitosamente a mão, e lhe dizer o quanto a cultuei (e a cultuo). Mas a velha timidez novamente me trava. Mantenho o ar blasé, como se acabasse de ver alguém que nunca me significara nada.
Depois 1: sento-me para um café, e observo-a de longe; folheia o livro cuidadosamente, a bordo de par de óculos que a torrna ainda mais vovozinha-do-sítio-do-pica-pau-amarelo.
Depois 2:  a velhinha coloca de volta o livro na prateleira, e uma mulher mais jovem se aproxima dela, e trocam algumas palavras.
Depois 3: as duas saem juntas em direção à Praia de Botafogo, e da mesa onde tomo café vejo aquela velhinha querida ganhar a rua e mergulhar na frenética multidão de final de tarde que faz regurgitar intensamente aquelas plagas cariocas.

Penso em segui-las. Mas não. Prefiro agradecer, ainda que possa se fingir de surdo, a esse deus bêbado - que mexe um tabuleiro de xadrez (nosotros) como se mexesse a bunda da mulata bossa nova que caiu no hully gully - por esses eventos inesperados, e sublimes, e extraordinários que nos ocorrem.

THE END.
 

2 comentários:

  1. adorei, rogério! tempo, tempo, tempo, saudade de vc.

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  2. Esses encontros inusitados tonificam a memória e tornam as pessoas ainda mais queridas.

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