quinta-feira, 3 de março de 2011

A PRAÇA CASTRO ALVES FOI NOTÁVEL INVENÇÃO DO DIABO QUE DEUS ABENÇOOU

Tinha algo em torno de vinte & poucos anos, e a seguinte, e temerária, ideia na cabeça (plano de jerico, pode-se hoje facilmente deduzir; mas, aos vinte & poucos  anos,  nossa diferença dos jericos, em alguns casos, e esse era o meu caso, é quase imperceptível): com copo de cerveja numa mão e quatro ou cinco bolachas cream crakers na outra, atravessar o mais cego nó do carnaval de Salvador, nos idos dos anos 1970-1980 - a  praça do Relógio de São Pedro. Objetivo final: chegar,  superlépido e superfagueiro, ao epicentro musical, lisérgico, e iconoclástico da folia baiana à época: a (libertadora) Praça Castro Alves.

Detalhes que não deverei ocultar, caro leitor: 1) essa travessia foi feita após ter me afogado em mistura alcoólica pontuada por cerveja, vodca e uísque; cheirado algumas fileiras de cocaína e esfregado mais certa quantidade nas gengivas; fumado alguns cigarros de maconha. 2) esse mais cego nó do carnaval de Salvador de antanho era estreito corredor, espécie de antessala do possível-simulacro-do-céu que viria a seguir, e que, como tal, era mix de inferno e purgatório; numa área pequena (de talvez 200 metros quadrados), e sem nenhuma saída visível a olho nu, milhares de pessoas empurravam-se, apalpavam-se, mergulhavam em libidinoso esfrega-esfrega, o que implicava avanços apenas milimétricos, e resultava em cenas de violência explícita inolvidáveis.

Não era raro nos anos 1970-1980 que, nesse, digamos, corredor-da-morte-momesco algumas dezenas de pessoas sucumbissem: asfixiadas; pisoteadas; baleadas;  esfaqueadas; trituradas; fulminadas por variantes homicidas de idêntico calibre. Pois bem: foi mais ou menos às sete da noite (exatamente o horário mais perigoso para atravessá-lo; no epicentro desse terremoto dionisíaco) que eu, meu copo de cerveja, minhas quatro ou cinco bolachas cream crackers, e mais dois ou três amigos mergulhamos de cabeça, tronco e membros nessa multidão-areia-movediça.

Hosana nas alturas: sobrevivemos todos, e chegamos inteiros, sãos e salvos, sem mácula sequer nos nossos corpos e nas nossas mortalhas - era época pré-abadás, na qual escondíamos nossos corpos em largos pedaços de panos coloridos batizados com esse emblemático epíteto. Ao chegarmos no fim da ladeira de São Bento, nas barbas da Praça Castro Alves, e avistarmos, enfim, a multidão em transe que, com ou sem trios elétricos, esbaldava-se sem pejo algum. se beijava com sofreguidão, trocava carícias dos mais variados calibres, e se afundava em todas as drogas ao alcance das mãos e das bocas, comi as quatro ou cinco bolachas cream crackers sobreviventes, bebi o copo de cerveja já ligeiramente quente, e beijei na boca os meus três amigos (ou seriam amigas? Who cares?)

O ponto final desse simulacro de odisséia dionisíaca, a praça-Castro-Alves-dos-carnavais-baianos-dos-anos-1970-1980 era a mais completa, e bem-vinda,  materialização de Sodoma e Gomorra que o planeta Terra conseguiu configurar na segunda metade do século 20 neste lado de baixo do Equador.  A Aids ainda não havia aberto suas asas nefastas sobre nós, e podíamos ser de todo o mundo, pertencer a todo o mundo, e, ao mesmo tempo, não sermos de ninguém, e não pertencermos a ninguém. A prática ainda em voga de separar o mundo entre homens & mulheres, gays & héteros esfarelava-se definitivamente - e eregíamos  templo ao ar livre no qual mandávamos preconceitos sexuais e morais para, perdão leitor, a puta que os pariu.

Nutria esse desvario sexual e comportamental a nossa irrefreável vontade de nos livrarmos para todo o sempre de trastes assim: 1) famílias amorosas, mas castradoras, mas limitadoras, mas repressoras, que reproduziam mecanicamente a moral ortodoxa católica, e que tentavam nos enfiar goela abaixo que sexo era algo sujo que só conseguia adquirir algum grau de limpeza quando o praticávamos para procriar, no pouco criativo estilo papai-mamãe; 2) grupos esquerdoides que babavam nas gravatas e, basicamente, nas cuecas imundas de crápulas do naípe de Stálin, Lênin, Fidel Castro, Mao Tsé Tung et caterva, e que que acabaram se transformando no lado B, na banda podre, de nossas famílias.

Minha querida mãe, a amadíssima e amantíssima senhora Águida Menezes, que Deus, ou quem de direito, a tenha em bom lugar, nunca me proibiu pular carnaval. Enquanto isso, na calada da noite, o grupo de esquerda ortodoxa ao qual me filiara nos meus tenros 18 anos, me colocara na parede. Chamara-me para conversar, e proferir severa preleção (e isso me motivou, entre outras aberrações que não vêm ao caso, a mandá-los à merda alguns anos depois; dezenas de amigos também agiram dessa forma e pularam fora dessa nau sem rumo). A preleção era a seguinte: - O carnaval é festa burguesa, portanto proibida.  Achamos mais adequado que o companheiro fique em casa, em segurança, lendo algum livro sobre materialismo dialético.

Intuía que devia mandar esse companheiro de partido enfiar esse materialismo dialético naquele lugar, mas contive-me. A boa notícia: de certa forma me vinguei: não li nenhuma obra sobre ditadura do proletariado.  Preferi mergulhar nos escurinhos dos cinemas do centro de Salvador, e ver filmes, muito filmes - e, se não me falha a memória, aproveitei a oportunidade para protagonizar algumas cenas de sexo fortuito entre cena e outra de algum filme de Michelangelo Antonioni,  ou de Luis Buñuel.

Ou seja: em meados dos anos 1970, vivíamos entre a cruz e a espada. Corríamos, mas o bicho nos pegava: tentávamos escapar da familia repressora e caíamos em garras ainda mais afiadas e pérfidas, e nos chafurdávamos em grupelhos de esquerda mais obscuros ainda.

Quem quiser que conte outra, mas, para mim, foram os seguintes ingredientes que fizeram germinar e borbulhar aquela absolutamente libertadora Praça Castro Alves dos anos 1970-1980:
1) A necessidade vital de nos desgarrarmos das asas superprotetoras de nossas famílias (que nos amavam profundamente, mas que também nos tolhiam profundamente).
2) O desejo igualmente vital de nos de nos desalinharmos de certa esquerda ortodoxa que nos cooptou assim que nos livramos das asas protetoras dos nossos pais, e que, com sectarismo notável, nos fez sentir saudades das asas protetoras de nossos pais.
3) O mundo ao redor cada vez mais libertário, anárquico, lisérgico, liberal, iconoclasta, no qual pontificavam, entre muitos outros, heróis libertários do naipe de Elvis Presley, Little Richard, Mick Jagger, Janis Joplin (lá fora), e (aqui no Brasil)  os Dzi Croquetes, Nei Matogrosso (andróginos fulltime) e Caetano Veloso (sim, o hoje senhorial Caetano Veloso já foi ícone do mau-mocismo libertário pátrio; ´gosto muito de te ver leãozinho´ pode ter ajudado a tirar muita gente do armário. (É sempre bom lembrar que foi ele, quem, inspirado em  pichações murais de Paris-maio-68, berrou a palavra de ordem de toda essa santa desordem dessa minha nada santa geração: é proibido proibir).

Proibido proibir se tornou o mais emblemático mantra da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980. Quanto mais iconoclastas fôssemos mais felizes seríamos, pensávamos – e fomos muito iconoclastas, e fomos muito felizes. Durante mais de uma década, limitados a leste pela estátua passiva do poeta Castro Alves (eventualmente sodomizada por bêbados mais exaltados), ao sul pelo Palácio dos Desportos, e a leste pelo então Cine Guarani (hoje Espaço Unibanco Glauber Rocha), a cobra fumava (maconha), bebia, e cheirava, e nós todos, solidários, a imitávamos.

A quantidade de fatos de natureza felliniana que presenciamos, e que protagonizamos, na Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 era estonteante. Tratava-se de espetáculo coletivo no qual éramos protagonistas e espectadores, palco e platéia, homens e mulheres, gays e heterossexuais. Nada parecia nos diferenciar - e, de fato, nada nos diferenciava.

Nessa praça Castro Alves em eterno transe, difícil lembrar esse ou aquele personagem que mereça destaque (éramos todos destaques; a ideia era exatamente essa: sermos completamente livres de todas as caretices vigentes, e ocuparmos espaços e mostrarmos o que realmente éramos, sem familiares ou esquerdoides a nos torrar a paciência). Mas talvez eu, perene e incansável testemunha ocular dessa história, possa citar, noblesse oblige, o nome de certo personagem argentino que pairou sobre Salvador, em geral, e pela Praça Castro Alves, em particular nesse período de tons fortemente dionisíacos.

Chamava-se Fernando Noy (e talvez ainda se chame; há informações extra-oficiais de que ele sobreviveu ao tsunami que nos abateu a partir dos anos 1990, e continua vivo e forte em Buenos Aires). Foi predecessor do que podemos chamar homem-mulher-evento (mercadoria barata hoje em dia, quando mulheres-frutas dão o tom e se vendem a preço de xepa Brasil afora).

Em coluna que escrevia à época em jornal de Salvador, o Correio da Bahia, alcunhei-o de ´pomba-gira portenha´. Tornamo-nos amigos, os amigos possíveis. Mesmo nos meus anos loucos, era difícil ser amigo de figura tão extraordinariamente frenética e tão extraordinariamente heterodoxa. Lembro de certa tarde de domingo de carnaval na qual ele ligou da portaria do prédio onde eu então morava, na Ladeira da Fonte, no Campo Grande. Estava aos prantos, e berrava, num portunhol muito peculiar: - Rorélio, Rorélio, querido, acuda-me! Abandornaram-me. Mis hombres mi abandonaram. Estoy solita e desesperançada. Tu me consolas, cariño?

Ainda emergia de farra monumental do dia anterior, e tive de ser cruel: fingi-me de surdo. Desliguei o interfone, tranquei-me no quarto, e voltei a dormir. Com alguma culpa, admito. Mas o sono matou a culpa, e não pude (nem quis) resolver o problema afetivo da ´pomba-gira portenha´.

Mas a ´pomba-gira portenha´sobreviveu, e sobreviveu galhardamente. No dia seguinte, ao cair da tarde,  - quando gays do Brasil inteiro se empoleiravam na escadaria do Palácio dos Desportos, numa espécie de desfile em free style  (todas, montadíssimas, inventavam formas criativas de atrair a multidão que se esgoelava pelas cercanias) - eu avistei Fernando Noy.

Sendo mais exato: eu avistei a bunda flácida, branca e gorda de Fernando Noy resplandecer magnificamente sob o sol (já pálido do final de tarde) do novo mundo.

Usando de certa força física (ele não era exatamente longilíneo, ou fracote), conseguiu ocupar o espaço central da escadaria. Em seguida,  rodopiou feito perua bêbada, a bordo de longo e amplo traje de vaga inspiração inca em tons multicores. De repente, não mais que de repente, deu as costas para a platéia e exibiu as alvíssimas nádegas barrocas. Resultado: delírio e frenesi totais entre a plateia-multidão alucinada, e que se alucinava ainda mais por causa da chegada de trio elétrico comandado pela hiper-mega-super-alucinantemente-louca-Baby Consuelo despontando no finalzinho da Rua Chile.

Perdão, homens e mulheres que beijei sem sequer saber-lhes os nomes; perdão, parceiros de cenas de sexo fortuito ou nao fortuito; perdão, amigos que me enfiaram pontos de ácido goela abaixo, ou que surgiram do nada e me oferecaim ´baseados´ salvadores; perdão, inesquecíveis e viscerais Babys Consuelos, Caetanos Velosos, e Morais Moreiras que balançaram o chão da praça e e me fizeram crer que o céu, se existisse, era ali e naquela hora.

Mas devo admitir, caro leitor: minha lembrança mais arrebatadora e imorredoura da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 é exatamente essa ´pomba-gira portenha´ intitulada Fernando Noy. Mais exatamente no momento em que ele/ela rodopia no alto da escadaria do Palácio dos Desportos tal e qual uma perua bêbada e drogada, e escancara para a multidão em transe a enorme bunda branca, flácida, e gorda.

Perdão pelo sacrilégio (mas podemos, e devemos, ser sacrílegos em períodos carnavalescos): - Deus salve a bunda branca, flácida e gorda de Fernando Noy.


   



4 comentários:

  1. Meu último carnaval em salvador foi em 1985. Nunca mais voltei. Deu saudades depois de ler. Eu era mais um dos milhares de gauchos a soltar a franga nos frenetic carnaval days. Passou um filminho. Beijão Roger.

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  2. Tua crônica é roteiro de filme. Eu me ofereço para fazer o papel da "pomba-gira gaudéria". Eu sei fazer, eu estava lá.
    Beijo
    Paulo C.

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  3. detesto discursos nostalgicos.Mas nesta segunda depois da "mudança do Garcia", chegando ao Campo Grande,sobreviver ao confronto com as Muquiranas,junto com uma amiga resolvemos rever o "nosso" estacionamento da Castro Alves .depois de uma pausa no Lido no 2 de julho chegamos com o coraçao palpitando depois de 19 anos.Surpresa: o estacionamento virou o camarote do ile aye, a praça parece o largo da Dinha violencia à parte conseguimos depoi de 3 horas voltar (vivos) ao Campo Grande.

    Manfred Muss

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