sexta-feira, 11 de março de 2011

FÁBULA FUTURISTA INSPIRADA NOS XIXIS QUE INFECTAM NOSSAS ESQUINAS E MENTES

Perdão pela, digamos, licença poético-política: talvez possamos enxergar certa evolução no fato de a grande motivação da perseguição policial no Rio de Janeiro nos carnavais mais recentes tenha sido algo fora dos-padrões-de-alta-voltagem-de-criminalidade que marcam esta cidade, apesar dos pesares, ainda maravilhosa: milhares de cariocas (homens e mulheres) foram flagrados mijando e, eventualmente, cagando em vias públicas. Por vias tortas, essa mudança do rumo da prosa poderá estar nos sinalizando: a violência endêmica que marcava (e ainda marca) a capital carioca,  impulsionada pelo megatráfico de drogas que campeava (e ainda campeia) pelas dezenas de morros que nos cercam,  esteja de algum modo recrudescendo.

Há assumido tom de sofisma na minha conclusão a seguir, mas ouso concluir (e quem quiser que atire a primeira pedra):  o fato de agora prestarmos atenção  à prática de milhares de homens e mulheres mijarem e cagarem em vias públicas do Rio de Janeiro (e de Salvador, e de São Paulo, e de Brasília; e de outras capitais brasileiras e d´alhures) pode ser boa notícia, 

(Tão boa notícia quanto aquela que daria conta de que o maior problema de certo de lar de qualquer classe social havia deixado de ser o pai que bate na mulher e nos filhos com toalhas molhadas. Aparentemente o patriarca tirano teria abandonado a prática de bater na mulher e nos filhos com toalhas molhadas. Agora a questão central se transformara no fato de o maior problema desse lar de qualquer classe social ser agora o hábito adotado por um dos filhos de peidar no meio da sala na hora exata em que a família recebe visitas).

Caso o caro leitor ainda não tenha percebido, devo-lhe revelar, noblesse oblige: mijar em vias públicas, aqui e alhures, não chega a ser, digamos, modismo ou, para usar palavra da moda, tendência, e tendência torpe, desses últimos verões. As belas e cada-vez-menos-frondosas árvores do Aterro do Flamengo que o digam (se algo pudessem dizer):  dezenas delas estão condenadas  à morte e à demolição pela quantidade de urina que homens e mulheres despejam em suas raízes, fosse ou não carnaval, desde sempre.

(Mija-se, e caga-se,  em vias públicas desde os tempos em que Portugal brincou de descobrir o Brasil, e se intensificou nos tempos coloniais e, depois, imperiais - é bom que se ressalte,  o mau hábito era cometido em cidades d´aquém  e d´além mar. Em maior ou menor grau de caudalosidade, é fato inegável, mija-se, e caga-se sem parcimônia em jardins e praças e vielas de cidades de todo o planeta Terra. Em Salvador, por exemplo, o cheiro de mar e o cheiro de urina e fezes se misturam tão intrincadamente que parecem formar, digamos, iindissociável ecossistema olfativo – e que nos permite conjeturar que, em algum lugar do futuro, certo poeta-escritor poderá usá-lo como fator de inspiração, à guisa da Madeleine proustiana).

Donde se pode, cinicamente, admito, mas procedentemente, admito também, deduzir:  é quase um luxo podermos colocar esse assunto em discussão hoje em dia. Podermos discutir esse tema, outrora pueril em função da realidade hodierna que nos assolava (e que ainda nos assola),  em vez de discutirmos assuntos mais escabrosos, tipo a taxa média mensal de assassinatos no Rio de Janeiro, talvez possa significar certo avanço nos nossos padrões de (in)civilidade.

Quero deixar claro, antes que algum leitor dispare a primeira pedra e me acuse de defensor público desses mijadores e cagadores de vias públicas: acho essas práticas abjetas, ignóbeis, e incivilizadas.  Mas quero deixar claro também,  sem hipocrisias (e quem quiser que atire a segunda pedra) que, ainda bem, não somos deuses, logo somos falíveis, e confessar: já cometi essas práticas abjetas, ignóbeis, e incivilizadas um sem-número de vezes. Não pretendo justificar-me, mas devo atestar: tais ocorrências se deram por falta de locais mais adequados para, como diziam os antigos, ´satisfazer nossas necessidades fisiológicas´,  num raio de vinte, ou mais, quilômetros.

Certa vez, todos os sanitários públicos do Parque da Cidade, em Brasília, estavam hermeticamente fechados (era  um primeiro-de-janeiro). Mea culpa: tive de praticar o número 1 e 2 à sombra de frondosa árvore, enquanto  alguns quero-queros empoleirados nas cercanias me olhavam com cara de pouquíssimos amigos. Numa palavra: horror.

Essas ocorrências também se deram por motivos menos defensáveis: excesso de álcool no organismo, por exemplo. Nos orgíacos carnavais da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980, quando esses toscos-banheiros-químicos-de-hoje-em- dia sequer haviam sido inventados, mijávamos encostados em qualquer superfície sólida, ou mezzo sólida - que podia ser a murada fétida que dava para a Ladeira da Montanha, o pedestal da estátua de Castro Alves, ou a perna amiga do namorado/namorada, ou de algum desconhecido solidário.

Voltei a cometer esse, digamos, nefando pecado, no final dos anos 1980, em Barcelona, Espanha. Estava sozinho, e absolutamente inebriado pelo fato de conhecer uma das cidades mais encantadoras do mundo. Logo, excitadíssimo. Logo, louco de vontade de viver como se não houvesse amanhã. Alta madrugada, saí, siderado, de certo ecumênico bar no qual todos os gatos e gatas pareciam, e eram, pardas, e na qual tomei todas, e mais algumas. Ato contínuo: caí de boca numa estonteante e deslumbrante madrugada, na qual entrava rambla, saía rambla, deslumbrado, me sentindo o rei dos animais.

Tão rei dos animais que, ao olhar para todos os lados e não avistar viva alma (apenas a beleza estonteante da zona central da capital catalã), abri a braguilha, ziguezagueei sem rumo,  e serpenteei as calçadas barcelonesas com o meu nada precioso líquido. (Ok, algum leitor mais impiedoso poderá querer enfiar-me em alguma câmara de gás; e o que posso alegar em minha defesa é: 1. ainda muito jovem, acreditava, erradamente,  que o mundo me pertencia; 2. apropiando-me de algum freudismo de mesa de bar, poderia argumentar que eu era brasileiro pobre e fodido  que, de maneira infantiloide, tentava me afirrmar, enlameando, sujando, marcando (tal & qual  gatos e cachorros marcam seus territórios) o solo espanhol.

Sou, não duvide, caro leitor, a favor de multas e de prisões para esses porcalhões,  que, outra vez por vias tortas, nos fazem lembrar que somos tão animais quanto quaisquer outros animais. Ok, inventamos a penicilina, o rádio, a bomba atômica, a dinamite,  o facebook, mas na hora H, quando a bexiga e o intestino bimbalham freneticamente, percebemos: somos todos iguais nesta noite escura.
Tomara 1: que essa discussão necessária, mas quase lúdica, sobre mijar ou não nas nossas vias públicas, nos ocupe os corações e as mentes por mais e mais carnavais, e não carnavais. Tomara 2: que o Rio de Janeiro não volte a viver em clima de guerra civil, na qual mergulha há algumas décadas, e que mijar e cagar em via pública se torne o único crime praticado por estas plagas.
Tomara 2: que meus queridos e amados sobrinhos-netos e sobrinhos-bisnetos-por-virem, em algum lugar do futuro, voltem a viver em sociedade na qual a vida humana valha mais que um naco de crack, ou um grama de cocaína. Enfim: em mundo no qual seres humanos não se esfaqueiem e não se destruam com a mesma naturalidade com que comerão pizzas-sintéticas e sucos-de-frutas-idem.
Quero muito menos ainda que meus sobrinhos-netos e sobrinhos-bisnetos-por-virem sintam saudades do começo do século 21. Não desejo que, nas barbas do século 22, num rasgo de romantismo, Pietro, Dmitri, Beatriz, Augusto, Marvin, Davi, e os outros dois sobrinhos-netos-gêmeos que estão a caminho, olhem para o passado com nostalgia e saudade - e contem para seus netos e bisnetos algo assim: ´Era uma vez um tempo em que os cariocas eram quase felizes, e a única coisa que os entristecia e os aterrorizava era o fato de algumas pessoas fazerem xixi e cocô nas ruas´ .
(Momento da fábula futurista sugerida no título desta crônica: nesse hipotético  começo do século 22, os netos dos meus sobrinhos-netos deverão rir amarelo desse tempo dantanho, que, ainda bem, não mais voltará. E, nesse tempo que ninguém mais fará xixi nas ruas, tentarão esquecer o fato de então habitarem mundo no qual não existirão mais becos, muros e vielas, e, por tabela, não mais haverá gentes que mijem e caguem nas ruas.
Então, começo do século 22, todos os brasileiros (os que sobrarem da série de tsunamis devastadores, provocada pela apocalíptica erupção do vulcão Cumbre Vieja, nas Ilhas Canárias em 2054, e que, finalmente fez o mar chegar até Minas Gerais e aos altos sertões nordestinos)  habitarão às margens de uma Brasília apenas parcialmente devastada. Tentarão viver, em habitações verticais coletivas, da melhor maneira possível:  a água potável sumirá do planeta e, então a urina (aquela mesma desperdiçada pelos seres humanos no século anterior) será misturada a produto químico inventado por garoto-prodígio-goiano, e que a transformará, em questão de segundos, em água potável.
Terão água potável gerada a partir da urina em quantidade suficiente, mas viverão no osso. Nao terão a hoje vital luz elétrica. Nem tevês cabo. Smartphones. Ipods. Ipads. Tablets. Skypes. Facebooks. Fashionweeks. (Ir)reality shows. E-mails. Nem toda essa quinquilharia midiática que hoje mais nos afasta do que nos une - o sertão que virou mar engolirá tudo.

Os netos dos nossos netos e sobrinhos-netos serão (ou tentarão ser) felizes de maneira sbolutamente minimalista. Investirão nos afetos. Visitar-se-ão todas as noites. Trocarão irmamente os mantimentos que sobreviverem à hecatombe tsunâmica. Conversarão sobre a vida alheia ao redor de fogueiras.

Pensando bem, não sera um futuro assim tão completamente infeliz).



4 comentários:

  1. O "indissociável ecossistema olfativo" que mais ficou impregnado na minha memória foi sem dúvida a Praça Castro Alves. Lembro das vezes em que o calor que eu sentia descer por minha perna e encharcava meu sapato, não era outra coisa senão alguém mijando solenemente ao meu lado. Tenho viajado muito com as tuas crônicas.
    Abraço. Paulo C.

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  2. Adorei o final com o "momento da fábula futurista"!

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  3. Grade cronista, é bom lembrar que a urina dos astronautas nas naves espaciais já é purificada, ou seja, suas profecias estáo a caminho de se cumprir - na íntegra. Abraço amigo do Adalberto.

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