sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O VELHOTE JOSÉ, O BEBÊ MIGUEL & O CADÁVER ÀS MARGENS DA BAÍA DE GUANABARA

O oásis no fim da caminhada diária de quinze quilômetros pelo Aterro é o quiosque de toldo verde do senhor José, na ponta sul da praia do Flamengo. O comandante-em-chefe desse balsâmico lugar é velhote mal-humorado que aprendi a gostar. Do alto de 80 anos bem vividos, pode se dar ao luxo de responder com murmúrios quase imperceptíveis aos nossos bons-dias - e de fumar cigarrinho escondido sempre que pode, longe dos olhos da freguesia eclética que o frequenta diariamente para consumir águas de coco, cervejas em lata, refrigerantes, e guloseimas calóricas diversas.

Todo dia estou lá. Todo dia lhe cumprimento cordialmente (´Tudo bem, seu José?).  Todo dia me esforço muitíssimo para desvendar o que dizem aqueles murmúrios quase imperceptíveis, e ainda não consegui desvendar esse enigma. Tais murmúrios podem, claro, retribuir, calma e solenemente, os nossos bons-dias com outros bons dias. Mas podem também retribuir, calma e solenemente, os nossos bons-dias com imprecações tipo ´vá plantar coquinhos´ (em versão mais light), ou ´vá se foder´ (em versão mais hard).

Na verdade pouco me importa o que o senhor José murmura entre dentes. O que me importa é que o senhor José, acredite se quiser, com todo o azedume que o marca indelevelmente, é pessoa a quem  me afeiçoei. Não me afeiçoei apenas ao senhor José, mas à clientela eclética que o frequenta: a) gays estrangeiros & nativos sessentões; b) cinquentonas carentes a bordo de cachorros que tratam como se fossem filhas, as quais batizam com nomes humanos tipo Beatriz e Sabrina; c) aposentados que discutem política fervorosamente; d) casais dispostos a discutir a relação tendo como cenário o Pão de Açúcar ao fundo; e) turistas-deslumbrados-com-a-paisagem que a tudo fotografam; f) alegres famílias com renca de filhos e de parentes falastrões.

Na quarta-feira, 9, revia com carinho alguns desses personagens, quando percebi dois estranhos no ninho:  em cadeira à minha direita sentava-se jovem mãe, não mais de 20 anos, que carregava no colo bebê recém-chegadíssimo ao mundo. A jovem mãe exibia nonchalance que me impressionou. Com uma mão sorvia água de coco. Com a outra dava de mamar ao rebento.

Sedes saciadas (a da mãe e a do bebê), a jovem mãe colocou o filho no carrinho estacionado ao lado. O pequerrucho ajeitou-se no ninho sem um balbucio sequer, superprofissional, descoladíssimo. Em seguida, passou a contemplar a paisagem ao redor.

A jovem mãe abriu o jornal do dia na página de tevê, e mergulhou em contrita leitura.

Encantei-me. Abandonei a minha água de coco, e lhe perguntei: - O bebê já tem dois meses?

A jovem mãe, tirando com algum esforço o olhar da coluna de tevê do jornal:- Dois meses? Que nada! Ele nasceu há quinze dias!

Espantei-me com a, digamos, enorme juventude do meu novo-companheiro-de-quiosque-do-senhor-José, e quis lhe saber o nome:. A mãe, agora mais atenta à minha presença (já acabara de ler a coluna de tevê), afirmou, risonha e franca: - Miguel.

Despedi-me de Miguel, da mãe de Miguel, da cadela labrador Sabrina, do senhor José, e peguei o caminho de casa.

Dia seguinte, 10, de novo a caminho do Aterro do Flamengo e, depois, do quiosque do senhor José, ainda trazia o recém-chegadíssimo Miguel na cabeça. Decidira escrever crônica sobre Miguel, e sobre o quiosque do senhor José (o homem velho em contraponto ao homem novo; meu cérebro se afundava em lorotas assim). Mas o imponderável despontaria na próxima curva - e me revelaria o terceiro, e inesperado,  personagem desta crõnica: semicoberto com dois enormes sacos para carregar lixo da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana), às margens plácidas da Baía de Guanabara, jazia corpo de homem. (A alguma distância do cadáver, dois ou três carros dos bombeiros e da polícia, e alguns caminhadores trocávamos impressões sobre o ocorrido; ´morreu a tiros no começo da manhã´, alguém comentou).

Sofri certo choque, mas fui em frente. Dei duas voltas no Aterro do Flamengo. Passei pelo quiosque do senhor José (e percebi, desolado, que Miguel e a mãe não voltaram ao lugar). O que significava, constatei, pesaroso: aquele homem morto que avistara algumas horas antes poderia desviar-me do caminho de escrever crônica, digamos, enstusiasta, e edificante, sobre a continuidade e a perpetuidade da vida que a entrada em cena do bebê Miguel sacralizava (o meu cérebro se afundava em lorotas assim).

Ainda tive a esperança de que, na trilha de volta para casa, aquele cadáver anônimo já tivesse sido retirado de cena. Mas não. Continuava lá, e agora a paisagem se revelava ainda mais desoladora: o que via era cadáver ainda mais solitário, naufragado no gramado verdejante que margeia a Baía de Guanabara.

A poucos metros do corpo, catadores de mexilhões, que acampam no local em todos os verões, agiam como se o corpo daquele homem já fizesse parte da paisagem: conversavam, gargalhavam, comiam, trabalhavam.  Agora via-se apenas pequeno carro da polícia, com solitário policial a bordo - e esse policial a bordo fazia cara de paisagem, olhava na direção contrária à do corpo, como se tentasse arrancar da cabeça (para todo o sempre) aquela visão macabra daquele cadáver anônimo.

Também tentei fazer cara de paisagem. Mas caí em tentação: olhei agudamente para o cadáver agora apenas parcialmente coberto (o vento forte destruira parte dos sacos plásticos de lixo da Comlurb). Avistei duas pernas magras, provavelmente jovens. Uma das pernas esticava-se inteiramente. a outra, arqueava-se, como se a morte o tivesse arebatado antes de o homem ter conseguido esticá-la totalmente.

Segui em frente, sem sequer olhar para trás. Dali a algumas dezenas de metros, pensamento arrebatou-me. Era como se aquele cadáver anônimo implorasse: - Escreva sobre mim, escreva sobre mim!

O mal-humorado, mas querido, senhor José  e o jubiloso recém-nascido Miguel hão de me entender: esse imponderável cadáver anônimo acabou se tornando o terceiro personagem dessa crônica - e este cronista que vos escreve roga aos céus: que  José e o Miguel vivam até os cento e poucos anos - e que morram durante o sono, em paz, a léguas da morte inglória desse homem que morreu cravado de balas às margens plácidas da Baía de Guanabara.. 

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6 comentários:

  1. Que texto lindo, tio! Aliás, como sempre...

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  2. Que bom em um só testo contemplar a dor e a alegria, o ínicio e o fim da existência... Obrigado.

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  3. Gostei muito!!!!. Fazia um tempo que eu não caminhava no "Parque do Flamengo". Bjs

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  4. uns nascem, uns morrem, uns fazem sua caminhada, outros tomam água de coco... e todos são potencialmente personagens de crônica, como vc mostra.

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  5. Bah Rogerio. Adorei. Senti saudades do aterro e das belas caminhadas que me ensinaste a dar. Me sinto em casa neste trajeto. E que viva Miguel e que viva seu José e que o cadaver... descanse em paz. Beijão

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  6. ai, como me delicio com essas crônicas...
    saudades de seus personagens reais, rogério!

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