quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A HORA DE BRINCAR DE NÃO CRER NUM DEUS QUE PODE TUDO

Gosto de brincar de acreditar em elucubrações aparentemente disparatadas tipo: 1) Deveríamos prestar mais atenção nas pistas que nos são apresentadas algo aleatoriamente no decorrer das nossas vidas. 2) A partir dessas pistas poderíamos decifrar alguns indícios e sinais a respeito do que poderá ocorrer nas nossas existências futuras.

Gosto também de brincar de duvidar de certos dogmas que nos querem enfiar goela abaixo desde o começo dos tempos: quem disse, caro leitor, que as ciências ditas exatas e as explicações-mágicas-que-as-religiões-propõem explicam as diatribes diárias que nos bombardeiam?

Gosto ainda de brincar de me perguntar: como explicar, sob a ótica quadrada da razão, ou da des-razão religiosa, o fato de certa criança sobreviver à enchente bíblica que dizimou a casa na qual morava e que lhe dizimou todos os parentes, inclusive a irmã que lhe era gêmea?

Diante dessas tragédias sempre surgem cientistas e sociólogos querendo dar alguma lógica a algo que não tem, nem nunca terá, lógica alguma (procurar sentido onde não há sentido algum é meio assim como ir pescar sem levar redes e anzóis, e, pior, num mar, ou rio, onde não haverá peixe algum e num lugar onde não haverá mar, ou rio, algum). Essas opiniões são talvez necessárias (no sentido de tentar evitar o pânico absoluto e de tentar nos apascentar), mas demonstram-se falsamente terapêuticas, algo assim como tomarmos comprimidos para aquela enxaqueca, que, sabemos, alguns dias depois certamente voltará. 

Há também (geralmente famílias encantadas com o fato de o filho ter sobrevivido, e a filha do vizinho, sucumbido àquela tragédia) quem, em entrevistas exibidas ad nauseam pelas nossas estações de tevê, vocifere que o mentor desse, digamos, vaudeville-trágico-dramático no qual estamos completamente imersos, atenda pelo nome de Deus, Alá, e derivações, e brade: - Foi Ele que salvou nosso menino. Foi Ele! Ele queria que nosso menino continuasse vivendo!

A pergunta que me surge, inexorável, diante desses depoimentos absurdamente patéticos que marcam todas as grandes coberturas de tragédia, é a seguinte: Por que Deus poupou a gêmea que sobreviveu (a amaria mais que a outra?), e matou a gêmea que foi sugada pelas águas (a amaria menos que a outra?

(Quem quiser pensar mais sobre esse tema, temos ótima opção em cartaz nos cinemas, ou nas boas lojas de vídeo: Além da Vida/Hereafter, dirigido por Clint Eastwood. Eu recomendo.).

Talvez não precise nem dizer, mas digo, e digo peremptoriamente: acredito mais na existência de Papai Noel do que nesse Deus eternamente bêbado (e que seus adoradores teimam em definir-lhe as ações erráticas com que nos bombardeia com pueril e inócua boutade: esse vetusto Senhor escreveria certo por linhas tortas). William Shakespeare, mais sensato e mais cínico, foi mais direto ao ponto, e cravou, na voz de Macbeth, em peça teatral homônima: ``A vida é uma história contada por um Deus bêbado, cheia de som e fúria, e não significando nada.´´  

Diante dessa insanidade que prega, em campanha midiática que tem a idade do mundo, a existência de um Deus que sempre sabe o que faz, resta-me sonoramente gargalhar. Diante dessa óbvia falta de sentido do mundo (apud Eclesiastes & Dostoiévski & Faulkner & Tolstoi e toda a grande literatura que, felizmente, nos cerca) talvez nos reste brincarmos daquele bem-humorado passatempo citado no primeiro parágrafo: tentar descobrir em algumas pistas que a vida nos apresenta aleatoriamente algum indício de nossas vidas futuras. 

Em 2008, assim que troquei Brasília pelo Rio de Janeiro, recebi e-mail bem-humorado de amigo querido que conquistei durante os cinco meses que trabalhei em Campinas (SP) no ano anterior. Ele dizia: - Você está se repetindo. Morou aqui no bairro do Botafogo, e agora, aí no Rio de Janeiro, também está morando no bairro de Botafogo.

À primeira vista, não dei maior atenção à observação feita por esse amigo querido. Tinha mais o que fazer. Mas, de repente, do nada, no meio de longa caminhada pela Praia de Boa Viagem, no Recife, em meados do ano passado, onde passava temporada de trabalho, o tema insinuado por esse amigo querido me veio à tona inesperadamente: - Essa Boa Viagem que agora percorro diariamente antes de seguir para o trabalho me remete a outro lugar também chamado Boa Viagem, e que eu frequentava muito em tempos idos. Afinal de contas, não perdia uma festa da Boa Viagem sequer que ocorria em todos os primeiros dias do ano em Salvador.

Fiat lux: a observação blasé feita pelo meu amigo campineiro me arrebatou com força incontrolável. Entre o Pina – na ponta norte da praia recifense, ao lado do bairro Brasília Teimosa – e Jaboatão dos Guararapes - já na área metropolitana da capital pernambucana - minhas sinapses cerebrais convergiram num único ponto: lembrar nomes de pessoas, de cidades, de bairros, de situações, de tudo enfim, que  pareciam se repetir ao longo da minha vida.

Lembrei-me, por exemplo: Pernambuco (em cuja capital viera morar temporariamente atendendo a um inesperado convite, e que amara, e amo, de maneira inesperada e surpreendente) era o código secreto que o meu pai Crispim Menezes usava na loja comercial que tinha em Jequié-Bahia, nos idos dos anos 1960, e na qual, embora de má vontade, odiava aquela rotina, trabalhei alguns anos durante a minha infância. (Necessária explicação: os comerciantes de antanho criavam palavras-código com as quais marcavam os preços de custo dos produtos à venda. Por exemplo: se determinada mercadoria estivesse marcada com as letras P-E-R significava que custou 123 moedas da época, o que nos permitia calcular a margem de desconto que poderíamos dar ao cliente).

Enfim, a seguinte, e talvez insana, idéia me arrebatou: aquela palavra Pernambuco surgindo no meu caminho na mais tenra infância não quereria significar que o lugar Pernambuco cruzaria o meu caminho em algum lugar do meu futuro, e nele viveria aprazíveis e inesquecíveis dias, como, de fato, vivi?

Nos 16 quilômetros do percurso de ida e volta da Praia da Boa Viagem, anabolizado pela endorfina que essa longa caminhada me fazia produzir sem parar, outras dezenas de insights dessa natureza me cruzaram o cérebro.

Por exemplo: o Botafogo, bairro no qual moro hoje no Rio de Janeiro, foi bem mais que a repetição do bairro homônimo e menos famoso de Campinas, como o meu amigo campineiro notou. Fora o nome do time pelo qual torcera fervorosamente na minha infância nos anos 1960, e do qual lembro até hoje de figuras lendárias como Manga, Garrincha, Gerson, Nilton Santos, Amarildo, Didi e Zagalo. (E qual foi o bairro no qual me hospedei na primeira vez que vim ao Rio de Janeiro, em 1972: Botafogo.)

Para encerrar: nos anos 1960, criança ainda, morava na Avenida Rio Branco, 817, em Jequié, na esquina  de certa rua chamada Silva Jardim. Nessa época, ônibus e caminhões que cruzavam a Rio-Bahia ainda não passavam por fora da cidade: cruzavam ruas centrais jequieenses, inclusive essa esquina ao lado da casa onde morava.

Bem nessa esquina da minha casa, havia placa indicativa da distância de minha cidade até esta capital carioca. Todo santo dia, na verdade, toda santa hora, lia o que estava escrito nessa placa – e o que estava escrito nessa placa era: Rio de Janeiro, 1360 quilômetros.

Mais de quarenta anos depois, muitas outras cidades depois, 1360 quilômetros depois, eis-me aqui morando no Rio de Janeiro.

Responda rapidinho, caro leitor: é ou não é mais salutar e, no mínimo, lúdico, brincar de enxergar recorrências que nos ofereçam eventuais pistas dos nossos destinos futuros do que brincar de crer num Deus aterrador a que tudo pode, e que poderá dispor de nossas vidas como bem quiser e entender?

4 comentários:

  1. Rogério,
    Para variar, sua crônica incomodou...rs. Mas, resistirei a ser advogado de Deus. Ele não precisa de mim para isso. Continue assim, cutucando; sinal de que está vivo. Continue também crendo na existência futura.

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  2. Tio
    No mínimo instigante esse texto....
    Bj gde.
    Guida

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  3. Rogério, lá vem vc me instigando com sua crônica. Aliás, desde que lhe conheci, vc sempre me instiga. Agora mesmo, me vejo em pleno oeste brasileiro, onde vim passar meu aniversário por recomendaçao de uma astróloga (o melhor local para a renovaçao solar) lendo sua crônica e me perguntando o que tudo isso tem a ver? Talvez nada....O melhor mesmo é brincar de Deus em nós....Beijinhos da sua assídua leitora e amiga, Shirley Pinheiro

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  4. Oi Rogério, leio sempre as suas crônicas, de muito bom gosto, por sinal. Esta, está especialmente deliciosa. Penso o mesmo sobre esse tal Deus. É muita crueldade. E por falar na crueldade desse SENHOR, atrevo-me a recomendar a leitura de CAIM, de autoria de José Saramago, se é que você ainda não leu. O livro é uma maravilha, trata exatamente sobre esse Deus cruel e dá para ler de uma sentada, de preferência num dia de sábado, já que eles dizem que o TAL criou o mundo em seis dias e dencançou no sétimo. Continue assim que ficará sempre melhor.
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    Abraços,
    Calucho Carvalho

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