sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A ESCRITORA URUGUAIA, O SURFISTA PAULISTA E UM LUGAR QUE NÃO EXISTE

Do nada as pessoas surgem. Do nada as pessoas desaparecem.  Já tentei resolver equações assim, que fazem alguém entrar em (nossa) cena, mas que também fazem alguém desaparecer de (nossa) cena. Já atravessei madrugadas insones elucubrando sobre coisas do tipo: a) o que explica o fato de X aparecer inesperadamente na vida de Y?; b) o que faz com que, em algumas horas, ou em poucos dias, X se torne vital para Y?; c) o que significa quando, de repente, X some completamente, para todo o sempre, da vida de Y?

Já fui X. Já fui Y. O caro leitor também já foi X. O caro leitor também já foi Y. Todos nós já fomos bafejados por essas tramoias do destino  que nos desconcertam e que  nos desorientam. Na verdade, nada faz muito sentido. O jeito é fingir que entendemos a piada, e irmos em frente. Ponto.

Mas gostamos de brincar de olhar para trás, e de ruminarmos sobre o nenhum significado dessas situações inusitadas que nos ocorrem diuturnamente. Ou de especular, sem esperança alguma de encontrar respostas, o porquê de certas pessoas entrarem (inesperadamente)  e saírem  (também inesperadamente) das nossas vidas.

(Duas dessas minhas recorrentes ruminações me inspiram a escrever esta crônica.)

Caso X-1: 1988. Fiz primeira viagem ao exterior. Levava 2 mil dólares no bolso. Passei dois meses viajando por vários países da Europa. Depois de três semanas em Madri, Espanha, aproveitei o tentador preço de final-de-semana-em-Paris, que custava uma bagatela. Detalhes reveladores: 1) a viagem seria feito de ônibus; 2) o hotel no qual me hospedaria não seria, biensûr, o Ritz; 3) como viajava sozinho, dividiria o quarto de hotel com alguém que conheceria posteriormente, ao embarcar. 4) percebi, desolado, que se tratava de atroz roleta russa, na qual poderia deparar com matrona gorducha e rabugenta ou com velho babaquara a bordo de halitose devastadora. (Ou não. Mas tinha de pagar pra ver - e paguei.)

Na noite do embarque, em fria noite madrilenha de início de dezembro, entro em abafado escritório que serve de plataforma de embarque. Sento-me, e avisto a paisagem humana ao redor. Penso em desistir de Paris e voltar para o apartamento aconhegante do amigo que me hospedava na Calle de Vallehermoso, tal a, digamos, escassa beleza física dos companheiros de viagem. Respiro fundo, tento acreditar fervorosamente no conceito então muito em voga de beleza interior, e, ok, concluo: let it be, o que tiver de ser será

Entro no ônibus cheio de ansiedade, coração aos pulos. Disseram-me que o meu companheiro (ou minha companheira) de viagem e de quarto de hotel eu só conheceria no ônibus: seria a pessoa que sentasse ao meu lado. O tempo passa,  e ninguém senta ao meu lado. O que poderia ser bom augúrio (ter quarto ocupado apenas por mim) ou mau augúrio (essa pessoa chegaria tão em cima da hora que não daria tempo de, ao perceber quão monstruosa era essa criatura, pular pela janela e sair correndo pelas ruas madrilenhas).

Alivio-me: enfim alguém senta ao meu lado - e não é alguém qualquer. Trata-se de um dos homens mais lindos que já vi. Cumprimentamo-nos simpaticamente. Mas o diabinho-pessimista-que-me-habita me pentelha, sem dó nem piedade:
- Ele deve ser um espanhol mala, com chulé, e machão, e que vai lhe encher o saco o tempo inteiro... Kakakakakaka!!!!

O diabinho-que-me-habita-e-que-me-pentelha está redondamente enganado. O rapaz sentado ao meu lado é encantador,  é surfista, e se chama Márcio B. Não é  espanhol; é paulista, de Santos. A melhor notícia daquela estação: revelou-se,  nos três dias que passamos juntos em Paris, companheiro de viagem fantástico, tipo assim aquele que toda sogra gostaria de ter. Essa alvíssara me fez crer, pelo menos durante o tempo que dura esse espetacular final de semana parisiense: Deus existe, e, melhor, Deus me ama muitíssimo.

Bebemos champanhe vagabunda no topo da Torre Eiffel. Flanamos bêbados pelas ruas de Paris. Dormimos feito irmãos amorosos na estreita, e tosca, cama do quarto de hotel da Rue Magenta. Nunca fiquei tão íntimo de alguém em tão pouco tempo. Ao final da viagem, talvez pudéssemos concluir: a) eu conhecera o homem (no sentido mais amplo da palavra) da minha vida; b) Márcio B. conhecera o homem (no sentido mais amplo da palavra) da vida dele.

Na viagem de volta, trocamos afetos, endereços e telefones (ele iria para Londres; eu, para Roma). Abraçamo-nos efusivamente ao descermos do ônibus em Madri. Nunca mais nos vimos.

Caso X-2: 2001. Viajei de Brasília para São Francico, com conexões em São Paulo e em Los Angeles. Deu tudo errado. Pra começo de conversa, ao desembarcar nos Estados Unidos, funcionário com cara de fuinha da imigração não gosta de minha cara, cisma comigo, me faz interrogatório intimidador que me faz gaguejar, e quase chorar. Enfim me libera, mas, antes, como se fosse maneira peculiar de me enxotar, passa a mão gorda na minha bunda. Penso em reagir, em bradar em alto e bom som um contundente kiss-my-ass, mas desisto.

Afinal, adentrei o paraíso, pensei. Ledo, nagle, e ivo engano. O inferno apenas começara. Não consigo achar a esteira com a minha mala. Ao conseguir achar a esteira onde a minha mala deveria estar, descubro, desolado: naquela esteira não há mais mala alguma.

Quero chorar, quero gritar, quero voltar correndo para o colo de minha mãe. Contenho-me: já tenho mais de 40 anos, e podem pensar que sou terrorista. Circulo feito trôpego zumbi por todas as esteiras que possam ocultar a minha mala querida. Depois de alguns minutos de busca frenética encontro-a, solitária, e estoica, em lugar que não fica próximo a esteira alguma. Abraço-a, como se fosse a mulher ou o marido que volta da guerra são e salvo - e recomeço a minha saga.

Então percebo pouco mais da paisagem ao redor. Noto mulher morena e de curtos cabelos pretos. Ela me segue. Também empurra nervosamente uma mala, e também ostenta certo ar de pavor. No início tenho-lhe medo. Aos poucos, no entanto, constato: meio que nos espelhamos. Temos o mesmo ar de pavor, o mesmo pânico de estarmos em lugar no qual não conhecemos ninguém e no qual tudo dá absolutamente errado.

Enfim, essa mulher se aproxima, e fala portunhol algo familiar. Diz mais ou menos assim:: - Per supuesto, estamos no mismo barco. Tibo problemas na imigracion, casi perdi mi bagage e tambien estoy perdida....

Paramos para respirar. Dialogamos em idioma, digamos, próximo ao esperanto. Descobrimos: ambos deveríamos pegar a mesma conexão para São Francisco. A questão crucial agora é saber onde fica o terminal que nos embarcará. Com o nosso inglês esperântico, conseguimos captar opiniões absolutamente díspares a respeito de onde se localiza o terminal no qual deveremos embarcar. Uns dizem (ou assim entendemos): fica à esquerda. Outros dizem (ou assim entendemos): fica à direita.

Olhamo-nos estupefatos, e ela, decidida, esbraveja: - Vamos pra esquerda, mierda!. Fomos. A todo minuto temo que estejamos indo na direção errada, mas já estou cansado demais para contra-argumentar-lhe. E quem sabe não estará certa? E, de fato, está. Meia hora depois conseguimos chegar ao nosso terminal, e, milagre dos milagres, educadíssima funcionária da companhia aérea nos atende solicitamente e nos encaixa no voo seguinte para São Francisco.

Enfim, relaxamos: sentamos para um café. Descobrimos, encantados: somos ambos escritores e jornalistas (eu, brasileiro; ela, uruguaia; eu Rogério; ela, talvez-Isabel; mas não tenho mais certeza a esse respeito). Constatamos, mais encantados ainda: adoramos romance epistolar escrito por Honoré de Balzac intitulado Diário de Duas Jovens Esposas.

Continuamos a conversa literária no avião. Na chegada em São Francisco, eu e o amigo americano que me esperava de carro no aeroporto, a convidamos (e também ao marido dela que a fora receber) para pegar carona conosco até o hotel onde ambos se hospedariam. 

Na porta do hotel, trocamos cartões, telefones, e-mails, e efusivos abraços. Ficamos de nos telefonar para jantarmos nos dias seguintes. Mas ela não telefonou Mas eu não telefonei.

Ao voltar para o Brasil, sempre lembrava dessa escritora-uruguaia-talvez-chamada-Isabel. Mas o tempo foi passando,  e eu a fui esquecendo. Antes que esse esquecimento me arrebatasse, certo dia não contive o impulso, e lhe enviei eloquente e-mail. Foi devolvido: e-mail desconhecido ou inexistente, dizia automática mensagem de retorno.

Moral desta fábula transcontinental: o futuro é lugar que não existe.

7 comentários:

  1. genial!
    Rogério, adorei sua narrativa (essa também!).
    um beijo da fã de ontem e de hoje.
    Sylvia Cyntrão

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  2. Essa (crônica) tocou em algo que mexe muito comigo: perder as pessoas. Mesmo essas que parecem, depois, com menos importância do que
    pensamos no momento que a conhecemos.

    Quem/o que teriam sido essas pessoas na sua vida caso o contato entre vocês tivesse se mantido?

    O fato é que eu tenho saudade (ou medo de perder) aquilo que eu nem vivi ainda. Tenso, não?! Rsrs..

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  3. Oi Rogério!
    Sensacional, mas como dizia Vinicius, a vida é a arte dos encontros embora haja tantos desencontros em nossa vida!

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  4. Que delícia.

    No final do texto paramos para "puxar da memória" e reviver os nossos encontros e despedidas. Resultado: Doces lembranças.
    Beijos

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  5. Oi Rogerio,
    Adorável crônica.
    Tenho a impressão de que sou sempre Y, que com uma perna só jamais consegue entender a piada e seguir em frente.
    Odeio e-mail devolvido.
    Adorei o 'ledo, nagle e ivo engano", vou copiar(e dar os créditos). Beijin,

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  6. Que adorável descoberta você Rogério!
    adorei a leitura, que bom que você descobriu meu email nos endereços do Guilherme, e que bom que este não lhe retornou com erro!, rsrs
    bjos

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