sábado, 15 de setembro de 2012

UM GENTIL JULIANO PARA CHAMAR DE MEU E SEU (OU FROM RUSSIA WITH LOVE)


Minhas relações com pessoas que trabalham em operadores de celulares são geralmente bélicas. Quando me ligam, no meio de caminhada no Aterro do Flamengo, ou à beira da conclusão de texto no qual preciso do máximo de concentração, não titubeio: antes que a moça ou rapaz da operadora x, y ou z diga o novo serviço que me quer enfiar goela abaixo, eu lhes mando solenemente tomar no olho do cu.
Não sei se vão. Deveriam ir. Mesmo assim continuam a me ligar – e eu continuo a esbravejar o brado de guerra de consumidor que odeia ter a sacrossanta rotina diária interrompida por essas vozes anódinas vindas do inferno consumista que nos cerca.
A deselegante prática é ainda mais cruel quando espero telefonema importante que poderá determinar o futuro da minha vida e, noblesse oblige, passo a vida inteira esperando telefonemas importantes que possam mudar para melhor o futuro da minha vida. Não recebi muitos. Mas já recebi alguns. Muitos outros virão. (Deus é pai, como dizia a minha avó Joana).
No meio de tarde na qual alguém do Portal X ficou de ligar para dar o sim ou o não a projeto editorial que lhe apresentara havia meses, o celular disparou como uma metralhadora giratória que mata vinte crianças brancas e negras por segundo, em carnificina apocalíptica em algum país do leste europeu. Pulei da cadeira num átimo, coração mais acelerado do que os tambores do Olodum, e ouço: - Senhor Rogério Menezes? Aqui é da operadora Y, o senhor não gostaria...?
Não pude evitar, foi mais forte do que eu – e eu bradei ainda mais irado do que o Deus-do-Velho-Testamento: - O que eu gostaria mesmo era que o senhor tivesse o seu traseiro imundo perfurado pelo pênis-punhal do Conde Drácula, seu filho da puta...
Não fiquei com nenhum sentimento de culpa. Ao contrário: desejei que o tal moço ligue de novo para que eu lhe pudesse repetir ainda mais torpes impropérios que o meu cérebro expeliria. Mas ele não ligou de novo, e eu fui obrigado a quebrar no chão duro da sala simpático boizinho de barro comprado em Olinda.
Tenho mais sorte quando me dirijo pessoalmente ao posto de revenda autorizada da operadora X da qual sou cliente desde que os celulares valiam quanto pesavam.
(Não sou desses intelectuais otários que se orgulham de nunca ter tido um aparelho celular na vida. Orgulhar-se de não ter um celular ao alcance da mão é tão importante para o futuro da raça humana quanto se orgulhar de dar peidos seriais no meio de elevador lotado. Inócuo. Inútil. Banal. Besta.
Numa frase: a banalização do orgulho).
Não resisto a novidades tecnológicas desde que a primeira geladeira – Gelomatic usada, na verdade usadíssima, cuja maçaneta prateada dava choque quando a tocávamos – entrou em minha casa – e isso aconteceu quando eu já tinha mais de oito anos de idade – e então pude, extasiado, constatar:  poderia encher cubas de gelo com sucos de tamarindos ou carambolas, e transformá-los em pequenos picolés que mastigava gulosamente, em quase orgasmo, ao voltar para casa no final das aulas.
Também não sou desses caras e dessas coroas que trocam celulares como trocam mulheres ou maridos. Sou fiel enquanto posso. Um celular comprado em 2008, absolutamente vintage apenas quatro anos depois, foi o meu fiel companheiro durante o tempo que passamos juntos: transmitiu-me boas ou más notícias; por meio dele coprotagonizei diálogos infames ou transcendentes; e nunca pifou nas horas mais difíceis. Enfim, amigo e amante como poucos.
Semana passada, sem motivo aparente, resolvi me desfazer dele. Fui à revendedora autorizada da Operadora X, que funciona em shopping center aqui perto de casa, e onde fui atendido como um paxá. (Ou me acharam com cara de rico excêntrico cheio de tatuagens, ou foram mesmo bem treinados pela corporação multinacional que lhes paga os salários).
Atendeu-me jovem de 21 anos chamado Juliano. Não era bonito. Não era feio. Olhou-me com desconfiança. Não deve ter me achado bonito. Nem feio. Mas ele era sedutor. Eu também costumo ser sedutor quando quero. Em questão de minutos, conversávamos fluentemente como se fôssemos velhos amigos; ou pai e filho.
Meu projeto era adquirir um desses i-phones de última geração, que até nos masturbam em momentos de solidão, a custo zero – e deixei isso claro para Juliano. Ele emergiu da tela do computador – onde deve ter chafurdado por todas as minhas fichas criminais e não criminais – e de lá tirou duas ofertas, nem tão tentadoras assim: a) modelo, digamos X+2, por 219 reais; b) outro quase tão bom quanto, digamos X+1,9, que me custaria a bagatela de 29 reais.
Pobre como milhões de Jós que vagam hoje como zumbis mundo afora, pechinchei: - Só levo o aparelho se me tiver custo zero!
Juliano me olhou com sorriso matreiro – um sorriso que abriria uma clareira no inferno se preciso fosse – e me massageou com a seguinte notícia: - Ok, o seu novo aparelho não vai lhe custar nada; vou reduzir o seu plano para um valor menor, o senhor paga mais internet do que usa, embora o senhor a use muito; e vou colocar um chip e outro número telefônico no seu aparelho antigo, que o senhor poderá utilizar paralelamente quando for necessário!
Depois de alguns necessários momentos de negociações com as sinapses eletrônicas do computador que monitorava, Juliano me liberou, com o sorriso matreiro de sempre no rosto, apertou fortemente minhas mãos – e tinha mãos firmes e viris – e disse quase displicentemente: - Amanhã ou depois vão lhe enviar uma mensagem na qual lhe será pedido que o senhor avalie o meu atendimento. Tudo bem?
Tudo ótimo. Se todas as pessoas que deparo em caixas de supermercados, farmácias, lojas, bancos e congêneres tivessem essa elegância no trato que Juliano tem, que maravilha viver.
Epílogo 1: Agora já posso dar minhas caminhadas diárias pelo Aterro do Flamengo com o meu celularzinho vintage reserva enfiado no bolso lateral da bermuda vagabunda, sem temor de que os muitos ladrões de bicicleta que atuam na área, e já os conheço todos, me pulem na jugular – eles preferem celulares mais up-to-date como o que agora deixo em casa e uso apenas nas poucas reuniões externas de trabalho que tenho.
Epílogo 2: No dia seguinte, a operadora X me ligou pedindo, por meio de notas de zero a 10, que eu avaliasse o desempenho de Juliano. Incorporado de certo pathos assumidamente surrupiado de Márcia de Windsor – belíssima mulher que costumava só dar notas dez nos programas de calouros nos quais participava como jurada nos anos 70 –, sibilei, caprichando no sotaque carioca: - Déissssssss!
Juliano merece. (Já sei em quem votar nas próximas eleições para prefeito do Rio de Janeiro).
PS: Blogs têm sistema de acompanhamento de leitores ao redor do mundo. Nestes quase dois anos que escrevo este Lobo No Ar, a maioria absoluta de leitores que me acessam são do Brasil. Seguido, à certa distância, pelos Estados Unidos e Inglaterra. Eventualmente sou surpreendido por acessos realizados em países nos quais eu jamais imaginaria existisse alguém interessado em me ler: tipo Malásia e Kosovo.
Mas o que vem me intrigando nas últimas semanas é o espetacular aumento do índice de leitura do meu blog na Rússia. Não tenho parentes lá. Não tenho amigos lá. Quem me lerá na Rússia? Tomara que sejam os fantasmas de Dostoiévski, Tolstói e Turguêniev!  Por isso o subtítulo de meu post de hoje: From Russia With Love, nome de filme da série James Bond, de 1963, protagonizado por Sean Connery.
A propósito, Sean Connery poderia fazer o papel desse Juliano carioca que me tratou com a gentileza que todo ser humano deveria tratar outro ser humano.





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