terça-feira, 5 de abril de 2011

UM TELEFONEMA FANTASMA E UM RIO DE AZEITE DE OLIVA QUE FLUI NO MEIO DA SALA

Chego, enfim,  ao meu lar doce lar - nem tão doce assim, mas lar é lar. É começo de noite amenamente quente de segunda-feira carioca de abril se abrindo. Mal ultrapasso a porta, o celular toca inesperadamente, quase colericamente, a ponto de me provocar frêmito de susto. Dispara em algum lugar algo remoto nas imediações (ou dentro?) do meu corpo – e esse lugar desconhecido poderá  ser: a) os multibolsos laterais da calça cargo;  b) os vários compartimentos da mochila que levo sempre a tiracolo, quase à guisa de terceiro braço;  c) outros lugares não identificáveis tão facilmente, quem sabe o estômago?, (deliro);  ou o pulmão? (deliro de novo); ou os testículos? (deliro pela terceira vez).
Desespero-me. Penso:  ´Preciso atender a porra desse celular antes que a ligação caia; pode ser algo importante, quiçá vital.´ Atabalhoado, jogo ao chão as compras recém-feitas no supermercado; Merda, ouço o som de vidros que que se quebram. Merda de novo, deve ter sido os dois litros de azeite-de-oliva-que-amo-tanto que acabara de comprar. Merda das merdas, de fato foi – o que me leva a gritar palavrão de altíssimo calibre que ecoa pelo corredor do meu terceiro andar.
Os segundos passam velozes, algozes. Não consigo encontrar a porra do meu celular. Chego a acreditar que talvez o tenha realmente engolido e realmente tenha ido parar no meu estômago, ou nos meus testículos. Afinal o encontro: está abrigado na caixa onde guardo os óculos. Arranco-o dali com a ânsia dos desesperados.
Olho o visor: acesso informação talvez alvissareira: não se trata de X, de Y ou de Z, que sempre me ligam  ou, geralmente, disparam torpedos. Enxergo o prefixo (011), de São Paulo. A seguir, visualizo número telefônico, digamos, promissor: daqueles que combinam números alternadamente repetidos,  que caracterizam empresas de grande porte. O que me faz crer (preciso crer): será algum executivo de alguma empresa jornalístico-editorial paulistana me fazendo  afinal irrecusável convite profissional. (e, cá pra nós, caro leitor, quem não gostará de receber telefonema assim num começo de noite de segunda-feira?)

Lado A:  O meu ouvido direito tenta ansiosamente captar o que poderá se decifrar no outro lado da linha.
Lado B: Os meus olhos visualizam pequeno riacho de azeite de oliva que sai lentamente de um dos sacos de supermercado. Pior: se aproxima perigosamente do esplendoroso livro de J.M. Coetzee (A Vida dos Animais), que acabara de ler e que jogara displicentemente no chão do pequeno-corredor-de-entrada ao sair pela manhã.
A escolha de Sofia: atender imediatamente a ligação ou tentar salvar o genial romance do autor sul-africano? O que fazer, caro leitor?
(Relatório de atividades do dia 4 de abril de 2011: 
1) Caminho, como o faço todos as manhãs, 15 quilômetros pelo Aterro do Flamengo. É o melhor momento do dia. Creio, com convicção moderada: essa atividade física diaria,  emoldurada por uma das mais belas paisagens do planeta Terra, me garantirá, pelo menos, quarenta e cinco minutos a mais de vida.   
2) Volto para casa suado e gostosamente endorfinado. Meu prédio não tem elevador. Subo a galope os sessenta degraus da escada que me leva ao apartamento de terceiro andar no qual habito. É cansativo, as articulaçoes não mais tão juvenis estalam, o ar se rarefaz no meio do terceiro lance, mas os médicos garantem: é ótima atividade física, ressaltam, complementar. O que me leva a querer acreditar, com convicção igualmente moderada: tal prática me garantirá, pelo menos, quinze minutos a mais de vida.
3) Tomo banho gelado que me lava todas as almas. É absolutamente regenerador. A ponto de eventualmente crer, com convicção igualmente moderada: tomar ducha estupidamente gelada diariamente, seja no verão ou no inverno, me garantirá, pelo menos, dez minutos a mais de vida.
4) Na ida do banheiro para o quarto, quando passo pela sala, percebo com o rabo do olho: o notebook, embora parcialmente coberto por uma ou duas almofadas,  me dispara piscadela  lasciva, mezzo rubra, mezzo âmbar, como se me dissesse, sedutoramente: `Me  abra, me abra, me abra já, queridão!´. Mas resisto - uma das minhas metas para 2011 é  checar e-mails apenas uma vez por dia.
5) O celular apita, avisando que há mensagem. Alegro-me. Pode ser boa notícia. Ou não. Na verdade, hoje em dia o busílis não é receber boa ou má notícia, é receber alguma notícia, qualquer notícia. Mas  não é nem uma coisa, nem outra:  a operadora avisa friamente o valor da minha próxima conta.  
6) O controle-remoto meio abandonado e algo carente nos últimos tempos, me pisca, cheio de segundas intenções. Sei o que quer:  que o pegue, que o acaricie, que o acione e que assista algo na tevê em companhia dele. Mas ignoro-o. Foda-se. Afinal está cansado de saber: só aperto os seus botões quando quero ouvir músicas nos canais de som (basicamente jazz tradicional, jazz contemporâneo e bossa nova); ou para assistir, e chorar às pampas, ao seriado Brothers  & Sisters, e zerar o cérebro vendo os realities shows America´s Next Top Model e Top Chef.  
7) Saio de casa, e sigo para almoçar em self service brb (bom & razoavelmente barato) da Cobal do Humaitá. O hábito de sempre é beber em seguida pingado delicioso servido em  quiosque simpático bem ao lado. Mas não hoje:  a minha atividade a seguir é teste em esteira ergométrica (para avaliar as minhas condições cardíacas), e a zelosa atendente que marcou o meu exame havia sido muito eloquente: - O senhor não poderá ingerir nenhum produto que contenha cafeína durante o dia da realização do exame. Fui clara, senhor?
8) Totalmente descafeinado, sigo para fazer o teste ergométrico em clínica das proximidades. Honra ao mérito: sou muitíssimo bem tratado, e um médico, digamos, em pessoa, acompanha-me os exames. É superatencioso e cheio de entusiasmo. Quando  começo a ultrapassar os dez minutos iniciais em velocidade de corrida (com a mesma nonchalance que estaria se estivesse sentado na confortável poltrona da sala lendro  livro de Henry James), Doutor Marcelo urra, e vibra: - Excelente! Excelente! Quase me senti o próprio Carl Lewis. Saio do local com os resultados dos exames, que  garantem: meu coração está em perfeitíssimas condições de uso, e atravesso a rua Dona Mariana, lépido e fagueiro, carregando leve sensação de imortalidade.
9) Em seguida, vou ao banco resolver algumas pendengas financeiras, inclusive pagar o aluguel mensal do imóvel no qual habito Há fila gigantesca. Mas com a leve sensação de imortalidade que ainda borbulha no meu peito, enfrento a situação com bravura e galhardia indômitas – e meia hora depois posso ver de novo a luz do sol.
10) Na sempre feérica rua Voluntários da Pátria, cruzo com duas mulheres que conversam em vozes altíssimas, como se fossem surdas, ou quase. Não são bonitas, parecem preocupadas, e ostentam assumidas carantonhas. Uma delas grita para a outra: ´Droga de vida! Eu devo ter sido uma daquelas criaturas que jogaram pedras em Jesus quando ele estava na cruz. E as pedras que atirei devem ter atingido a cara dele.... a cara dele...
11) Finalmente chego ao cinema Estação Botafogo,  para assistir ao filme Incêndios, produção canadense que perdeu o Oscar para o dinamarquês Em Um Mundo Melhor (também excepcional). Apesar de pouco badalado pelos nossos críticos cinematográficos de plantão, trata-se de  produção deslumbrante, arrebatadora, instigante e devastadora. Saio  do cinema com a nítida impressão de que acabara de ver pequena grande obra prima, e, também, de que a vida é realmente faca de dois gumes: sublime por um lado; abjeta, por outro.)

Não é fácil me decidir entre atender o celular que continua a tocar insistentemente e salvar o romance de J.M. Coetzee que, àquela altura, já se empapa caudalosamente de azeite de oliva que escapara vertiginosamente dos vidros quebrados e se liquefaz irreversivelmente. Atendo à ligação. O que então ouço é voz aflita, a minha, quase desesperada, quase sem fôlego, quase sem ar - e essa voz aflita e quase desesperada, quase sem fôlego, quase sem ar, brada: - A...lô! Alô! Alô! Alôô! Alôôôôô!
Falo alô nas mais diversas entonações e nas mais diversas cadências.
O que desejo ouvir do outro lado da linha: - Alô, senhor Rogério Menezes. Prazer imenso falar com o senhor; aqui é da editora X, e o doutor Y está precisando urgentemente lhe falar.
O que realmente ouço: o mais inexorável dos silêncios. 
Não quero desistir. Fico repetindo a palavra alô por  alguns minutos. Finalmente, desolado, capitulo. Aperto o botão de desligar. Acendo as luzes. Dou dois ou três passos, evitando as compras que se espararramaram pelo pequeno-corredor-de-entrada. Sento na confortável poltrona da sala. Respiro fundo. Repito o mantra: tudo-zen-tudo-tudo-zen-tudo-zen. Dá certo:  consigo contemplar, e até ver certa beleza nesse quadro algo inusitado, no rio de azeite de oliva  que agora se espalha pelo chão e que invade caudalosamente as páginas do romance de J.M.Coetzee.
Mas quando o azeite de oliva já chega quase às margens do meu tênis recém-comprado, eu reka,  fiat lux: claro, o número que me ligara estava gravado no meu celular,  e eu poderei ligar de volta. Pego o celular, acesso o ícone mensagens recebidas, e lá está o seguinte número:  011 3411 4100.
Pronto. Tudo se resolverá, penso. Certamente alguém me ligara de alguma importante editora, e a ligação caíra. Por que não ligar de volta? Talvez até estivessem tentando me ligar e a ligação não estivesse se completando. Meus dedinhos magros, e ágeis, e basicamente, ansiosos, então discam pausadamente: Zero-o-número-da-operadora-1-1-3-4-1-1-4-1-0-0.

O meu corpo se torna todo ouvidos para eventual e simpática secretária que, desejo, me atenderá do outro lado da linha e dirá tudo que precisaria ouvir. Mas não há nenhuma secretária do outro lado da linha. O que se ouve do outro lado da linha é, novamente, o mais inexorável silêncio.
Flor de obsessão que sou, ligo uma, duas três vezes. Do outro lado da linha, repetidamente, três inexoráveis silêncios.
Ponho-me a pensar, e o pensamento recorrente é este: - Que porra é essa de, do meio do nada, alguém me ligar, não dizer nada, e ao ligar de volta, alguém novamente não dizer nada?
Rapído no gatilho, lembro-me de São Google, o oráculo que tira todas as nossas dúvidas (menos as existenciais), e o invoco via notebook. Claro, escreverei o tal número na página de busca, e certamente descobrirei a qual empresa aquele número pertencerá.
É o que faço. Ao fazê-lo,  dezenas de páginas virtuais me remetem a esse número telefônico. Mas não demonstram que aquele número pertença a essa ou aquela empresa. É sim, e eu pasmo, um número telefônico fantasma.
Navego por outros sites que têm esse número fantasma como tema, e leio depoimentos assim:
Maria das Graças (Rio de Janeiro):- “ Gostaria de entender o motivo pelo qual venho recebendo diariamente ligações deste número(11)34114100. Isso passa dos limites!! já que ninguém fala (sic). São fantasmas?...”
Rodrigo Silva (Jundiaí, São Paulo): “Também venho recebendo várias ligações do maldito (11)34114100. Há alguma maneira de bloquear essa xaropice?”
Marcela (São Paulo): “Também venho recebendo ligações desse número, eu atendo, não falam nada e quando eu ligo de volta dá ocupado! Que cargas d'água esse número quer comigo? ”
Nadia  (São Paulo): “Recebo de 40 a 50 ligações diarias deste número 011 34114100. É insuportável. Você atende e ninguem responde, e quando tenta retornar o número não existe.´´
Há mais dezenas de depoimentos de igual teor. Respiro fundo. Finjo que esqueço o rio de azeite de oliva que agora já invade toda a sala  e que transformara o romance de J.M. Coetzee numa frágil e tosca jangada. Pego o controle remoto, que me parece radiante por eu ter voltado a lhe dar atenção. Ligo a televisão. Teclos os números 4-5-2 dos canais de áudio. As vozes do Quarteto em Cy invadem a sala. Cantarolam  Eu sei que vou te amar, de Tom & Vinicius. Apago todas as luzes. Deito no sofá localizado a alguma distância do rio agora cada vez mais caudaloso do azeite de oliva  e sorvo com alguma delícia aquela atmosfera algo irreal, quase mágica  – e acho, mas não tenho certeza, que adormeci.

(Ao fundo  o celular volta a tocar colericamente).  

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3 comentários:

  1. acredite, rogério, tb recebo ligações desse número. o pior: elas vêm para o meu fixo.
    chego a minha cas e há, quase todos os dias, chamadas dele. enfim, meu amigo, temos um fantasma em nossas vidas. abraço.
    ps - lamento pelo azeite. uma pena!!!

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  2. Amigo! vc está no Rio... Próximo a Sampa. Agora eu, em pleno Sertão da Ressaca, onde Joca Ramiro comprou a sela bordada de lavores de preto-e-branco, recebo os fantasmagóricos telefonemas...imagine só.
    Abraços

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