sexta-feira, 15 de abril de 2011

RATAZANAS GORDAS TENTAM PEGAR O PAU DO ÍNDIO PRA FAZER CACHORRO-QUENTE

À GUISA DE PREÂMBULO
Costumava, em certa época de minha vida, proferir palestras sobre o ato de escrever crônicas. Nos momentos em que o meu poder de oratória não parecia mais capaz de impedir  que alguns circunstantes cochilassem à bandeiras despregadas, apelava para a seguinte boutade, noblesse oblige, de minha lavra: mais do que talento o cronista precisa ter a sorte de estar no lugar certo na hora certa. Dizia mais: eu era cronista de sorte, porque sempre que olhava ao redor, estivesse onde estivesse, fosse onde fosse, sempre encontrava algo sobre o qual escrever, e sobre o qual refletir.
Meio assim:  hipotética entidade me rodearia, intencionalmente, de ocorrências e circunstâncias inusitadas,  para me obrigar a escrever sobre essas ocorrências e circunstâncias inusitadas.  Único exemplo (a lista é infindável):  andava certa vez, por alguma prainha imunda não identificada da Ilha do Governador,  quando flagrei dois ou três garotos que acabavam de descobrir objeto algo esférico, parecido com  coco seco amolecido pela maré,  e começavam a brincar com aquele objeto algo esférico como se fosse bola de futebol. Mas, de repente, um deles se apavorou, e gritou para os demais: - Porra, cara, isso é a cabeça de um defunto. Caralho!  (Pior que era mesmo).
Ontem isso (essa sorte torta do cronista) voltou a me atravessar o caminho – e isso começou a me preocupar – e isso me levou a pensar na seguinte bobagem: será que algum dia serei assassinado para assim poder escrever crônica póstuma, e bem-humorada, nos inalcançáveis  moldes machadianos, sobre a minha própria morte?
A AÇÃO PROPRIAMENTE DITA
Encontro marcado: 15h30 do dia 14 de abril de 2011. Local: portão central do Campo de Santana, na avenida Presidente Vargas, em frente à Central do Brasil. O meu objetivo: escrever crônica sobre as condições precaríssimas de sobrevivência das centenas de gatos que vivem no local e das dezenas de gatos ali abandonados por seus donos diariamente. Enfim: registrar a maneira desastrosa com que nós, seres ditos humanos, tratamos o que não é espelho. O objetivo do meu amigo: acompanhar-me, e, também, registrar esse flagrante desolador de nossa condição humana.
Eu cheguei adiantado: às 15h10. O meu amigo, atrasado: às 15h55. Nesse ínterim acuei-me num vácuo macabro que inicialmente não soube explicar de onde se originava. Aos poucos, fui desvendando o cenário que me cercava, e entendi o terror que  começou a me invadir as entranhas – e o que via ao redor era dantesco, era algo que me pareceu mais os umbrais do inferno do que o que deveria ser um dos mais belos e encantadores lugares de lazer da cidade do Rio de Janeiro: os belíssimos jardins onde, ainda nem tão belíssimos jardins, o imperador fizera o discurso no qual proclamava a República Federativa do Brasil, em 1989.
Havia bêbados seminus esparramados pelos gramados. Homens e mulheres de aparências funéreas e olhares varados por drogas dos mais diversos calibres sentavam-se nos bancos, de tocaia, como se espreitassem a próxima vítima para sangrar-lhe a jugular a dentadas.  Meninos e meninas de dentes podres fumavam maconha e crack à beira do lago enquanto esfregavam as respectivas genitálias.  Lixo, inclusive inesperada bolsa branca abandonada com algumas roupas de bebê dentro, espalhado por todos os lados. Basicamente aquilo parecia pedaço do inferno na terra. Em síntese: Horror. Horror. Horror.
Foi quando vi  batalhão de gatos. Corri na direção deles, como se fossem a minha tábua de salvação - e  foram: estavam quase todos lá, belos & guapos, sempre belos & guapos, se espichando ao sol tórrido do novo mundo,  e se deixaram acariciar e se deixaram afagar. Foi quando também conheci dona Maria José, uma das muitas voluntárias que tentam alimentar os gatos e acudi-los quando adoecem, ou quando são espancados pelas más gentes que infestam o lugar. Ela fala desses gatos como se fossem filhos. Diz que tem um em casa: Nick. E já me pergunta,  como se íntimo dela fosse:  - Tenho 50 anos, já sofri dois enfartes,  e sou muito nervosa. Quem vai me querer se não um gato?
A pergunta procede, admito. Insisto na conversa, que, de repente, é interrompida por bando de rapazes que vestem apenas calções encardidos, e que nos atravessam, quase literalmente,  com ares ameaçadores.  Um deles esbarra em dona Maria José, e esbraveja: - Sai do caminho, bruaca velha! Ela dá de ombros, e, experiente, avisa: - Esses cara é tudo bandido (sic)! Já me ameaçaram de morte, mas já falei pra eles que,  se eles me encherem muito o saco, eu enfio neles uma faca de cozinha que carrego aqui na bolsa. Quer ver? Não, não quis ver. E ela prossegue: - E a polícia sabe do que acontece aqui e não faz nada. Tá vendo aquele policial ali na guarita de entrada? Você pode me esfaquear aqui, na cara dele, que ele vai continuar lá com a porra da bunda dele grudada na cadeira!
Maria José muda subitamente de assunto (o que me leva a imaginar que talvez ela tivesse um parafuso a menos; ou a mais), e proclama: - Mas, quer saber? Não tem melhor caçador de ratos do que  gatos. Veja se você acha  alguma ratazana gorda aqui no Campo de Santana. Os gatos acabaram com todos eles... 
Mas a conversa começa a se esgotar;  não há mais assunto; os gatos passam a migrar para outras áreas; e volto ao portão central do Campo de Santana. Penso em esperar o amigo do lado de fora, no calçadão da Presidente Vargas, mas o sol está tão inclemente e abrasador que recuo. Fico andando para lá e para cá, perto da guarita onde o policial tem a porra da bunda eternamente grudada na cadeira. Não que ele me inspire proteção, mas por ali há pelo menos alguma sombra.
O tempo passa. Agora a coisa-que-se-parece-com-policial-que-habita-a-guarita conversa com duas outras criaturas que ocupam aquele pequenos carros que a polícia carioca costuma usar. O tema da conversa agrava o tom macabro do local:  - Uma mulher bêbada, acho que era puta, caiu no lago dia desses. Só descobriram por causa do fedor. Tava a maior carniça.
Rogo a quem de direito que o meu amigo chegue logo. Penso em ligar do celular para saber se já está por perto. Mas falar pelo celular num lugar daqueles era atitude basicamente kamikaze. De repente, o celular apita na bolsa avisando que alguém me disparou um SMS, que diz o seguinte:  ´´No metrô, atrasado, pra variar...´´
Na ex-capital federal, quinze horas e cinqüenta e cinco minutos:  hosana nas alturas, o meu amigo chega. Cumprimentamo-nos  cordialmente – e a primeira coisa que o meu amigo fala é do clima ameaçador que percebeu logo ao chegar. Comento que senti o mesmo, e que continuo sentindo o mesmo. Mas, em dupla, sentimo-nos mais protegidos, e adentramos o parque. A paisagem é belíssima (trata-se, seguramente, de um dos lugares mais belas do Rio de Janeiro),  mas desoladora. Os cheiros são fétidos. Há manchas de sangue aqui e ali e acolá. Os tipos com os quais deparamos são absolutamente sombrios: prostitutas caricatas que remetem a velhos  livros de Jorge Amado, com maquiagem e gorduras em excesso, e vestidos em tons de amarelo e vermelho;  grupos de rapazes e moças esquálidos que nos olham com raiva e rancor; e finalmente, negro magro de olhos opacos surge do meio do nada; amassa ostensivamente a genitália e vem perigosamente em nossa direção. Esquivamo-nos, nem olhamos para trás, e seguimos, aparentemente impávidos.
De repente 1:  quase miragem, surge o que, à primeira vista, poderia parecer a parte oásis da nossa incursão fatídica pelo Campo de Santana.  Às margens de pequeno e bucólico lago dezenas de gatos  torram ao sol, se espreguiçam, desfilam cheios de charme e esplendor. Quase creio que há, de fato, neste exato local, certa calidez e bucolismo no ar. A ponto de, a alguns passos de nós, alguns rapazes vestidos de garçons (provavelmente recém-saídos do trabalho), fotografarem outro rapaz (não vestido de garçom, provavelmente amigo de fora que os viera visitar) que posa para a posteridade com belo gato aloirado nas mãos. (Tudo parece tão repentinamente bucólico que o meu amigo ousa tirar a câmara que carrega na mochila e flagra aquele gramado coalhado de gatos à nossa frente.  Eu, de perto, vigio para que, por trás dele, não apareça ninguém disposto a lhe furtar os pertences).
De repente 2:  quase miragem, surge o que, à primeira vista, poderia ser o prosseguimento da parte oásis da nossa incursão fatídica pelo Campo de Santana.  Um carro da polícia civil, nas cores preta e branca, estaciona a poucos metros de nós. (Pertenço a geração que sempre cultuou mais os bandidos que os policiais. Mas, desde a violência endêmica que assolou o planeta e da carnificina diária na qual se transformaram as cidades nas quais  morei – Salvador, São Paulo, Brasília, e, agora, Rio de Janeiro , não posso negar: sinto certa tranqüilidade quando flagro algum tipo de policiamento nos locais públicos pelos quais circulo).
Um dos homens desce do carro, e vem em minha direção. Crente de que ele está entrando em cena para nos proteger, quase vou ao encontro dele com certa alegria. Mas o que ouço da boca desse cara que se aproxima de mim é: - Seus documentos! O que o senhor está fazendo aqui? Queira vir comigo. Pasmado, quase robotizado, o acompanho, e, ao chegar perto do carro, percebo: alguém abre a porta para que eu entre.  Foi quando o meu amigo percebeu o que estava acontecendo, e veio ficar ao meu lado. Diz que está comigo, que somos amigos, mas um dos policiais fala (eles eram três): - A questão não é com você, é com ele!.
Daí em diante é puro Kafka, sem gelo. Tentativa de fazer pequeno resumo: 1) Um dos policiais diz que houve denúncia a meu respeito,  sobre o fato de eu ter conversado com alguém suspeito, e que, portanto, eu era pessoa suspeita também;  2) o primeiro policial que me abordou parece ser o mais indócil; tem revólver ostensivamente à mostra na altura da cintura, situa-se ameçadoramente à minha retaguarda, e demonstra agitação quase insana,  o que me fez crer: estaria absolutamente cheirado, como se tivesse acabado de cheirar  praia-de-copacabana inteira de cocaína; 3) o trio, nada delicadamente, pede nossos documentos; ´faz o quê?´; ´tem contracheque aí?´; ´moram onde?´; ´estava fotografando o quê?´; ´o que fazem num local como esse a essa da tarde?´ 4) intimidação, intimidação, intimidação. 
Enquanto essa indesejável e truculenta retenção policial ocorria, embora eu falasse, embora meu amigo falasse, embora os caras falassem,  o que martelava bem lá no fundo da minha mente eram duas coisas:  a) (uma mais real) Por que diabos esses policiais de merda, no  meio dessa praça coalhada de bandidos, vão achar que eu, com essa folha corrida de monge-beneditino-não-pedófilo, seria o vilão dessa trama macabra que viceja diariamente no coração do Rio de Janeiro? b) (outra mais fantasiosa) Ao contemplar o mar de gatos que, em postura absolutamente zen, testemunhavam contemplativamente aquela situação absurda e inaudita, perguntava-me -(lembrando de Dona Maria José, que afirmara peremptoriamente  o poder letal que os felinos teriam sobre os ratos do local): - Por que esses gatos filhos da puta não se juntam e vêm devorar essas três ratazanas gordas que, saídas do nada, vieram assombrar dois cidadãos respeitáveis?
Teria sido assim o que aconteceu. Mas acho que não foi exatamente assim o que aconteceu. Presumo que teria sido assim o que aconteceu: essas três ratazanas gordas, que pareciam abarrotadas de cocaína até a medula, me viram aparentemente sozinho (o meu amigo estava a alguns metros de mim no momento da abordagem), vestindo roupas simples mas elegantes (calça cargo bege, camiseta Hering vermelha, tênis de marca, e bolsa a tiracolo discreta, mas não exatamente tosca), e pensaram em me extorquir. Tipo assim: - Vamos pegar aquela bicha de meia idade que veio aqui para caçar macho e tirar uma grana para comprar mais cocaína, caralho! E atacaram.
Em dedução lógica, concluí também o seguinte: quando o meu amigo rapidamente entrou em cena (me apoiando e demonstrando que eu não era um pobre-diabo-solitário-caçando-homem-naquele-inferno-de-dante-localizado-a-poucas-quadras-da-Prefeitura-do-Rio-de-Janeiro),  a intenção daquelas três ratazanas gordas que pareciam imersas em cocaína até a medula foi por água abaixo, e aquelas  três ratazanas gordas inventaram essa história sem pé nem cabeça de que alguém me denunciara por que eu havia conversado com uma pessoa suspeita.
Enfim as três ratazanas gordas nos liberaram (a contragosto; pelo menos em relação a mim, que, pelo visto, era o, digamos, objeto do desejo desses celerados; ai de mim!), e um deles, o que parecia ter cheirado menos cocaína, nos deu o seguinte conselho: - Se vocês forem realmente ´boas´  pessoas, nunca mais voltem aqui. Aqui é um lugar muito perigoso, onde mais de uma pessoa é esfaqueada e morta por dia.
Já em liberdade, na balbúrdia e no caos alegre da Presidente Vargas, sinapse inesperada trouxe de volta ao meu cérebro algo que eu e alguns colegas de escola primária dos anos 1960 gostávamos de repetir em tom de brincadeira de vez em quando: - Por isso que o Brasil não vai pra frente. Pegaram o pau do índio pra fazer cachorro-quente. 
A moral dessa curtíssima, digamos, fábula, é a seguinte:  nesse Brasil  caótico no qual habitamos, quase sempre se pega a pessoa errada.
PS1:  Não posso deixar de registrar aqui o meu imorredouro preito de gratidão ao amigo que ontem me acompanhou nessa incursão fatídica pelo Campo de Santana. Ele nem sempre está – mas ontem estava no lugar e na hora certos. Talvez não fosse por esse meu amigo, a essa altura do apocalipse  eu estaria, cravado de balas e com a boca cheia de formigas, enterrado em algum terreno baldio a léguas daqui e de agora.
PS2: Mas como dizia o meu pai, sabiamente: a gente só morre quando chega a hora.


4 comentários:

  1. Só me veio a cabeça o seguinte: o que é que Ravic acharia de tudo isso, hein?! Rsrs..

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  2. Querido Rogério,
    esta sua crônica é uma aula que seu poder de oratória nos impede de tirar qualquer cochilo ainda que estejamos várias noites sem dormir. Adorei! E como o vizinho acima Ugo, também gostaria de saber o que o Ravic acharia de tudo isso. Bjs Cara Marcia

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  3. Acorda Amor,
    Também serve para vc, mas lembrei da música de Chico. "Era a dura, numa muito escura viatura
    Minha nossa santa criatura
    Chame, chame, chame lá
    Chame, chame o ladrão, chame o ladrão".
    Abraços

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  4. O que pensar quando os ratos já aparecem em plena luz do sol? Campo de Santana é perfeita metáfora de nossa atual existência: tudo de mais belo e horrível reunidos a um só tempo, em um só lugar. E você captou bem isso. Parabéns, mais uma vez...

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