terça-feira, 26 de abril de 2011

O POETA PÁLIDO DA MÃO OLEOSA E A JIBOIA QUE MORA NA URCA E VIVE À GRETA GARBO

Houve certa época de minha vida em que poetas barbudos e com halitoses fétidas  adentravam bares de Salvador que recendiam a bebidas baratas, a cigarros,  e a odores heterododoxos diversos. Nesses antros, em altíssimos brados, declamavam versos tortos  nos quais diziam, basicamente, que a burguesia fedia  (como se esse mantra significasse a descoberta da pólvora). Não mais freqüento bares de Salvador e alhures que recendam a bebidas baratas, a cigarros e a odores heterodoxos diversos, e talvez seja ainda possível que esses poetas barbudos e com halitoses fétidas continuem por aí declamando versos tortos nos quais basicamente dizem que a burguesia fede (como se esse mantra signifique a  descoberta da pólvora).
Nesses tempos de antanho (1975-1985), tremia de pavor quando esses poetas entravam em cena nos antros nos quais freqüentava. Tinham invariavelmente olhos esbugalhados,  e ostentavam invariável pathos guevariano. Passei a invariavelmente comprar todos esses livrinhos toscos. Motivo:  por ter no bolso exatamente a quantia  que pagaria o  ônibus que me levaria para casa (os amigos me pagavam a cerveja), certa vez recusei-me a comprar o livreto de poemas que certo poeta tentava me enfiar goela abaixo. Ao dizer-lhe, com refinada educação, que não poderia comprar o livreto de poemas que ele me oferecia, fui obrigado a ouvir: - Burguês, filho da puta. Senta a bundinha pra tomar cerveja,  mas se recusa a comprar a minha poesia REVOLUCIONÁRIA. VÁ SE FODER!  (E, a cada palavra, agora dita com pathos de deus-do-velho-testamento, vociferada em minha direção  chuviscos salivares do poeta irado aspergiam-me a face.).
A partir de então, sempre que ia a bares bebericar cerveja com amigos, levava o dinheirinho contado para pagar o seguinte, digamos, combo:  pelo menos uma cerveja  + o  ônibus que me levaria de volta para casa + o livreto de poemas de algum poeta revolucionário. Acabei fazendo involuntária coleção desses livretos horrendos, até que, em um dia  de fúria (talvez certo alguém me tivesse trocado por outro certo alguém; ou alguma merda assim), queimei-os todos. E contemplei, inebriado, essa fogueira  fumando baseados seqüenciados, que me levaram a ver todos aqueles poetas barbudos e com halitoses fétidas que me atazanavam nas mesas de bar de Salvador queimando nas labaredas advindas das próprias ´obras´  que criaram.
Fiquei com seqüelas: senti por grande parte da minha vida certo trauma, que se traduzia em pergunta recorrente: - Não se esconderia entre aqueles livretos de poemas que queimei sob os efeitos bombásticos de uma dor-de-cotovelo-malcurada anabolizada por 16 cigarros de maconha algum poeta fundamental  para a poesia brasileira,  e ao qual, com a minha insensibilidade abissal, não consegui vislumbrar? Quiçá um Manuel Bandeira? Um Mário Quintana? Um Augusto dos Anjos?
Mas, mistérios insondáveis da vida e da mente, sábado desses em minha caminhada matinal pela Pista Claudio Coutinho, na Urca, deparei com a seguinte cena:  em vários galhos de árvores da Mata Atlântica que margeia a via, enfiavam-se folhas de papel branco,  nas quais, como pude ver ao chegar mais de perto, se enfileiravam curtos poemas escritos à mão. Agora drogado não mais pela maconha de antanho, e sim pela esplendorosa paisagem que se avista do local, deixei-me encantar com aquele, delirei, varal poético, que me remetia (quis crer) aos livrinhos de cordel que devorava sem pejo nas feiras do interior da Bahia e que me ensinaram  que (boa) poesia e (boa) alegria rimavam (e rimam).
Olhei então ao redor:  avistei a alguns metros daquela, digamos, instalação poética, sentado em  banco tosco do lugar,  homem magro e pálido. Tinha barba por fazer, cabelos grisalhos, mas frondosos, cuidadosamente penteados para trás, à base de algum gel não identificado (talvez cuspe?). Percebeu meu olhar interessado (e culpado?),  e me olhou, igualmente interessado. Rápido no gatilho,  retirou da bolsa gasta (igualzinha àquelas  àquelas usadas pelos poetas revolucionários baianos de antanho) que carregava  vários livretos de poesia,  e os exibiu como se fossem gloriosos troféus. Poderia ter continuado a minha caminhada, mas não.
Algo me atraiu naquela criatura aparentemente saída do nada. Perguntava-me (em óbvio delírio provocado pela bela paisagem da Baía de Guanabara): não seria aquele homem o mesmo que  eu me recusei a lhe comprar livreto revolucionário,  e que me chamou de burguês filho da puta, e que mandou que eu me fodesse naquela Salvador de tempos idos?
Fui até ele. Bons sinais: o homem branco e pálido não tinha halitose fétida; recendia a sabonete barato mas não desagradável; e falava mansamente, e em voz baixa, às perguntas que lhe fazia. 
Informações básicas: 1) nasceu em Niterói; 2) não tem família; 3) mora sozinho no Méier; 4) admitiu faturar cerca de um salário mínimo por mês vendendo seus livretos em lugares como Praça 15, Leblon, Cinelândia e Pista Claudio Coutinho. 5) aposentou -se por invalidez - e pela saliva espumosa que teimava em escorrer-lhe pelos cantos dos lábios, deduzi , talvez maldosamente, que ele se tratava à base de remédios de tarja pretíssima; o que me fez deduzir, talvez maldosamente outra vez, que se tratava de um louco manso que se fazia passar por poeta para faturar alguns trocados (Nada contra; melhor, milhões  de vezes melhor,  do que, por exemplo, matar para roubar, modalidade que vem virando esporte, digamos, quase-olímpico nos últimos tempos, aqui, ali e alhures.).
Paulo S. C. (assim se chama o nosso poeta que comete poesia para faturar alguns trocados),  provocado pelo cronista, lembrou, depois de muuuuuitos segundos de hesitação, o nome de algum, digamos, confrade. Citou Neruda e Dramond (sic). Mas foi incapaz de lembrar de qualquer poema alheio:  ´Tenho memória fraca´, justificou. De repente, não mais que de repente, mudou bruscamente de assunto,  e se dispôs a me ensinar código capaz de tornar indecifrável qualquer texto que eu escrevesse no computador: - Poderia lhe cobrar dez mil reais, mas lhe passo esse código de graça. É o seguinte: o senhor troca a letra A por Z, B por X, e assim sucessivamente. Nem a Polícia Federal vai decifrar o que o senhor escrever.É batata!
Antes que enveredasse por caminhos ainda mais tortuosos, enfiei 2 reais (o preço cobrado pelo opúsculo) na mão oleosa do poeta, e parti.
Pouco tempo depois,  já quase na saída da Pista Cláudio Coutinho, havia dois guardas municipais estacionados. Perguntei-lhes, amistosamente: - Ela veio hoje? Um dos  guardas municipais me respondeu simpaticamente:  - Veio sim, olha lá ela toda enroladinha naquele galho de árvore...  Olhei, e vi:  era a própria. Alegrei-me. Era a jibóia que conhecera meses atrás e que havia algumas semanas não a encontrava. (À Greta Garbo, passa a maior parte do tempo solitária, comendo ratos e animais de pequeno porte, embrenhada na Mata Atlântica ao redor,  e só de vez em quando se deixa ver pela plebe rude e ignara).
Nas vezes anteriores em que a havia visto, a jiboia se revelava,  com todo o garbo e esplendor de seus quase quatro metros de cumprimento, absolutamente estática num galho daquela mesma árvore. Adotava postura absolutamente zen, como se os mortais que  a olhavam e a fotografavam freneticamente não lhe significassem porranenhuma (e nisso talvez tivesse alguma razão).
Nesse sábado, a jiboia mudara de postura: parecia rodilha (gigantesca) daquelas que as mulheres do interior do Nordeste usam para proteger o cocuruto  quando carregam lata d´água na cabeça.  Envolvia-se totalmente em si mesma. Ensimesmadíssima.  Integrava-se tão sistemicamente à árvore que a abrigava que parecia que sempre estivera ali, que nunca saíra dali. Não pude deixar de invejá-la nessa pelo menos aparente paz de espírito. Nada a fazia tirar do torpor no qual mergulhava. Nem mães histéricas que arrastavam crianças aos gritos de ´essa cobra é venenosa, Jéssica!´ (Deslavada mentira: jibóias não são venenosas). Nem adolescentes barulhentos e implicantes. Nem os cliques das máquinas fotográficas. Nada.
Quando crescer quero ser assim feito uma jibóia, bem e zen – pensava com meus botões.
Pensava. Mas deixei de pensar no exato momento em que uma mão oleosa alisou o meu ombro nu (vestia camiseta sem manga), e me cochichou no ouvido, respingando ali algumas gotículas de saliva: - Olha doutor, eu lhe contei a fórmula daquele código secreto, então o senhor tem de colaborar. Me arruma aí dez reais preu pagar um rango ali na esquina, vai. Quebra essa!
Meu mundo caiu. Quis mandar-lhe para os quintos dos inferno. Mas não. Enfiei-lhe a cédula de dez reais na mão oleosa, e voltei a contemplar a jiboia enrodilhada que, gretagarbosamente, não estava nem aí para o que lhe acontecia ao redor.
Na volta para casa, percebo,  ao tirar algumas moedas para pagar a água de coco: tenho o livreto do poeta da mão oleosa no bolso da bermuda. Arranco-o de lá, sento às margens plácidas da Praia Vermelha, e leio versos assim: ``Quando nos apaixonamos/Ficamos felizes e nos amamos/Numa linda valsa/Que o amor não passa/Por que você me abraça.´´
O dever de casa do caro leitor é refletir sobre a seguinte questão:   em meio a um tsunami devastador, você é o penúltimo dos sobreviventes,  e só lhe resta a oportunidade de salvar um dos seus companheiros de infortúnio:  1) esse poeta de mão oleosa; 2) essa jibóia que é a mais completa tradução de viva-e-deixe-me-viver.  
Qual deles você salvaria?


2 comentários:

  1. De início, não consegui ver relação entre o poeta e a jibóia da qual você já me havia falado. Mas, ao final da leitura, é uma delícia ver a conexão que você fez, embora a pergunta que encerra o texto já sugere que, após uma tsunami, o mundo teria um poeta a menos...

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  2. Nossa, Rogério. Adoro passear pela Claudio Coutinho, adoro a Praia Vermelha (não sei exatamente por quê, mas me lembra a da Boa Viagem, em Salvador). Ainda bem que nunca encontrei nem jiboias nem poetas inconvenientes em nenhum dos dois lugares.

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