sábado, 8 de janeiro de 2011

DONA TOINHA E SEUS DOIS PRESIDENTES

Neste exato momento em que o caro  leitor me dá o prazer de sua companhia, o homem (ou a mulher) de sua vida (ou de sua morte) poderá estar protagonizando alguma banal atividade física, fisiológica, mental, extrassensorial  (ou seja lá que diabo for)  em algum  lugar do planeta Terra.  (Sincrônica. Universos paralelos em epifania. Assim é a vida. Sempre foi. Sempre será. Tudo ao mesmo tempo agora - embora sejamos incapazes de vislumbrar a olho nu o tudo ao mesmo tempo agora a que estamos submetidos de maneira vital e inexorável).
Ou ainda 1:  como diziam os antigos, da missa não sabemos sequer a metade.
Ou ainda 2:  a vida é grande e indecifrável mistério sem sentido (apud Eclesiastes).
Mas deixemos de firulas, e vamos aos fatos:  
14 de julho de 1938: Enquanto um garoto (mezzo) branco de 7 anos chamado Fernando brinca no quintal de casa confortável de família bem nascida da zona sul do Rio de Janeiro, nasce,  na pequena Conceição do Mato Dentro, perto de Belo Horizonte,  Minas Gerais, pequerrucha e pobre garota negra  à qual batizaram Maria Antonia.
27 de outubro de 1945: Enquanto uma garota de 7 anos chamada Maria Antonia  brinca no quintal de alguma casa nem tão confortável assim de família nem tão bem nascida assim de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais,  nasce em Caetés, no agreste pernambucano,  um   pequerrucho e pobre garoto (mezzo) branco ao qual batizaram Luiz.
(Enquanto isso o então adolescente Fernando, já morando em São Paulo,  sequer imagina  que a mineira Maria Antonia e o pernambucano Luiz possam existir em vidas paralelas).
2 de janeiro de 2011: É domingo chuvoso, e vamos almoçar em Sobradinho, cidade satélite de Brasília. O lugar: casa (própria) sem luxos,  mas confortável, do Conjunto C4 . Nesse locai mora amiga muito querida desde os anos 1990: a hoje senhora de 72 anos Maria Antonia (de Amorim). Está casada desde 1964 com o motorista de ônibus,  hoje aposentado, Antonio (de Amorim), 79. É mãe de três guapos homenzarrões: Renato, 45, Rogério, 44, e Ricardo, 34. É avó de dois guapos netos:  Giovanna, 10, e Samuel, 2.  
Após o delicioso almoço feito pela anfitriã, sentamo-nos na sala, onde:
1) Saboreamos deliciosa sobremesa: ´Desculpe,  Rogério, o pudim  passou do ponto,   ficou solado , mas, mesmo assim,  a minha neta comeu quase todo com amiguinha dela aqui da rua.´   (Devo dizer:  foi o melhor pudim solado que já comi em toda a minha longa existência).
2) Jogamos conversa fora sobre coisas da (nossa) vida. Por exemplo:  Dona Toinha, como carinhosamente a chamamos,  relembra que chegou a Brasília na época da inauguração da nova capital federal; relembra também que desde então não parou mais de trabalhar como (ótima) quituteira. 
3) Revemos  fotografias,  como as que ilustram esta crônica,  que revelam como estamos e como somos eternamente submetidos às tramóias misteriosas do destino, e que eventualmente podem juntar numa mesma cena e num mesmo espaço elencos improváveis, como a mineira Maria Antonia (Amorim), o carioca Fernando ( Henrique Cardoso) e o pernambucano Luiz  (Inácio Lula da Silva).
Resumo dessa ópera edificante, caro leitor:  quituteira de mão cheia (´Sempre mexi com comida, Rogério, sempre!), Dona Toinha acaba trabalhando durante anos na casa do mais emblemático colunista social de Brasília: Gilberto Amaral. Até que, honra ao mérito,  surge o convite, nos idos dos anos 1990, para  fazer parte da equipe de craques que cuidam da copa e da cozinha do Palácio da Alvorada, a residência oficial dos presidentes da república federativa do Brasil.
Essa peripécia dramática de tons clássicos muda o rumo da trama:  torna possível que, no geral,  a humilde Dona Toinha  trave alguma intimidade com os meandros do poder; e que, em particular, possa conhecer os últimos dois presidentes da república com razoável intimidade - principalmente em relação a assuntos gastronômicos. Mas, discreta, ela, nessa conversa dominical pós-almoço,  tergiversa, e omite, com parcimônia mineira, eventuais excessos de gula cometidos por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva que possa ter presenciado.
Diante de certa insistência do cronista, Dona Toinha ri um sorriso cândido e concede, econômica, alguma informação: - O FHC era muito discreto. Era incapaz de reclamar da qualidade da comida que a gente fazia. Sempre achava tudo ótimo. Já o Lula era diferente. Quando gostava, dizia. Mas quando não gostava  também fazia questão de deixar bem claro que não tinha gostado.
Aviso aos navegantes: esta crônica não tem intenção alguma de revelar segredinhos gastronômicos de ex-presidentes. Pretende, sim, exaltar gentes como Maria Antonia de Amorim, que vieram do nada, que tinham quase tudo para darem errado, mas, de alguma forma, mudaram as regras do jogo.
(Ok, a vida pode não ter o menor sentido, mas conhecer donas-toinhas assim pode ser bem mais salutar que doses diárias de Rivotril enfiadas goela abaixo).
PS: Maria Antonia de Amorim se aposentou aos 70 anos, em 2008, e atualmente cozinha apenas para a família e os amigos.

6 comentários:

  1. Como disse minha prima: "é de emocionar"...

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  2. Dona Toinha é uma crônica em que A Solidão Vai Passar Longe Dela.

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  3. rogério,
    eu entrei na casa de dona toinha, eu comi o pudim solado, eu escutei as conversas dela contigo. eu estava lá, entrei lendo tua crônica, provei, vi, senti cheiros - de comida e de gentes... obrigado por dividir texto tão bom.
    toinha cabia numa das tantas histórias que contei no correio.
    tu me apresentaste, hoje, a ela.., nunca é tarde.
    tu fazes falta no jornalismo diário, rapaz..
    é 1h50 da madrugada. vou dormir achando que a vida e as pessoas ainda são boas. obrigado, mais uma vez, meu amigo.
    abraço com gosto de dona toinha... marcelo abreu

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  4. belo, texto, queridão. Acho maravilhoso e borgeano essas vidas paralelas que um dia se cruzam e se pontualizam na existência...Parabéns.

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  5. Rogério,
    Você nunca perde uma boa história. Dessa vez você trás à luz uma pessoa maravilhosa, como Dona Antônia. Responsável por muitas alegrias aos dois mais importantes da nossa história recente. ótima crônica. Isso não é maktub..ahahah. Você entende o que quero dizer.

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  6. Testando a nova configuraçãom enquanto aguardo a nova crônica...

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