sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

DONA ILAIR E SEUS TRÊS QUERIDOS E AMADOS CACHORROS

Verdade que não me empapucei  do caudaloso, sem trocadilhos, noticiário sobre as enchentes que mataram centenas de pessoas esta semana no interior do Rio de Janeiro,  e que deixaram jornais e canais de tevê numa espécie de transe catártico. Poupei-me da náusea (vejo cenas assim desde que me entendo por gente, ainda petiz, no começo dos anos 1960, em Jequié-Bahia, quando o Rio de Contas, que corta a cidade, invadia casas que o margeiam com fúria colossal e devastadora, e ceifava a vida de muitas gentes) .
Outro exercício de arqueologia afetiva pessoal: as primeiras imagens jornalísticas que vi - (ainda registradas em gigantescas fotografias em preto e branco que ocupavam páginas inteiras da revista O Cruzeiro, nas quais praticamente aprendi a ler e nas quais absorvi os meus primeiros eflúvios jornalísticos) - foram de enchentes devastadoras que matavam centenas de pessoas no Rio de Janeiro. 
Em síntese: trata-se, para mim e para milhões de brasileiros que tenham alguma, digamos, memória trágica, de quase monótono dèja-vu , que se repete ad infinitum e ad nauseam.
Ainda assim, econômico na contemplação masoquista dessa tragédia, acabei captando sobras dos noticiários que eventualmente tentei  escapar. Alcançavam-me nos botecos das esquinas do Baixo Botafogo por onde passava, nos quais televisões eternamente ligadas me arreganhavam as cenas que me poupei de ver na tevê de casa. Ou, ainda, entre zaping e outro, nos intervalos nos quais buscava desesperadamente algo menos desesperador para assistir ao vivo e a cores: a nossa imorredoura capacidade de, perdão leitores, fazermos merda, de cavarmos a nossa própria sepultura, de nos inviabilizarmos cada vez mais como o único ser vivo que se diz racional - como nos jactamos de ser. 
(Ok, alguém poderá dizer, com mais ingenuidade do que razão: trata-se de retumbante tragédia, e tragédias serão sempre inevitáveis.  É. Pode ser. Mas os meus botões, e alguns botões alheios, vivem me infernizando com o seguinte mantra: estamos-nos-inviablizando-cada-vez-mais-como-o-rei-dos-animais. E, temo, eles estão cobertos de razão).
Talvez esse raciocínio nada, digamos, edificante, tenha me ajudado a entender a seguinte ocorrência pessoal: do pouco que vi dos noticiários das tevês e dos jornais  foi certa sequência de imagens dramáticas protagonizadas por dona Ilair Pereira de Souza, de São José do Vale do Rio Preto, o que realmente me emocionou profundamente. Flagrava mulher desesperada, entre a vida e a morte, que, no meio de correnteza que ameaçava levar de roldão a casa de alvenaria na qual morava, tentava desesperadamente salvar o vira-lata de estimação:  um tal Beethoven.
As imagens, que revi há pouco no Youtube antes de escrever este texto, e que voltaram a me emocionar, evidenciam:  dona Ilair não decidiu quem continuaria vivo – se ela ou Beethoven.  Alguma, digamos, instância superior decidiu por ela, e uma correnteza mais forte, deus-ex-machina terrível, arrancou-lhe o querido vira-lata dos braços e o arrebatou para todo o sempre (Havia outros dois cães ao lado da nossa heroína trágica até a vigésima-quinta hora, não identificados por nossas folhas, e igualmente arrebatados pelas águas). 
Lamentei essa pequena grande tragédia, no meio de outras tanta alegadamente maiores, pelo seguinte fato: essa ocorrência vitimou criaturas (além de Beethoven e seus dois amigos, certamente centenas de animais foram levados pelas águas) que, até prova em contrário, não tinham nada a ver com essa, perdão de novo leitores, merda toda que os seres humanos estamos fazendo desde sempre e, creio piamente, faremos até o fim dos tempos.
Cachorros, gatos, e outros animais ditos irracionais, são incapazes de agir como nós seres humanos costumamos agir. (Nunca esquecerei pichação que vi nos muros de Salvador em algum lugar do passado: Por um mundo menos humano). Animais ditos irracionais não traem. Não constroem casas onde não devem,  em nome da especulação imobiliária e da sede inesgotável de ganhar mais e mais dinheiro. Não cometem crimes com o mesmo ímpeto com que devoram feijoadas completas. Não se tornam políticos que, em campanha, prometem mundos e fundos para amenizar a miséria humana, e, quando eleitos, sentam a bunda nos tronos, e, ali abancados,  mamam nas tetas do poder para todo o sempre.  Não se deixam levar a sério e crêem que são a glória da raça. Não... etc, etc, etc.
Minha emoção profunda adveio da minha convicção de que os animais ditos irracionais não têm nada a ver com essa história sórdida e abjeta. (Ok, muitas crianças morreram nessa tragédia, e crianças também não têm nada a ver com essa história sórdida e abjeta; não ainda; mas, para o bem e para o mal, crianças crescem e nem todas as crianças se tornam adultos menos capazes de fazer merda diuturnamente). 
Certamente fato acontecido no dia anterior à eclosão dessa tragédia ocorrida no Rio de Janeiro seria decisivo para explicar essa minha emoção profunda ao ver os cães de Dona Ilair sendo tragados pela correnteza das enchentes. Em Brasília, ao pegar o elevador e descer para pegar o táxi que me levaria ao aeroporto, olhei para a porta do apartamento do amigo querido que me hospedara:  o olhar desse amigo querido era amistoso e algo saudoso. Nesse olhar podia-se ler a seguinte mensagem: sentiria a minha falta, mas sabia, sensatamente, que eu tinha de voltar para a casa onde moro no Rio de Janeiro e seguir o rumo que a vida me reservaria.
Mas o golden retriever Martim, atualmente um dos meus amigos mais queridos e amados, em Brasília e alhures, a mensagem que se podia ler no olhar que me dirigia não era exatamente a mesma. Ostentava olhar devastado pela tristeza. Parecia inferir que não ia me ter mais afagando-lhe o pescoço macio e as orelhas felpudas como sempre faço quando lhe estou ao lado. Parecia inferir também que nunca mais voltaria a me ver – e isso lhe doía profundamente - e isso lhe colava no rosto plácido e belo um pathos de dor sincera que poucas vezes vi em rostos dos seres humanos ditos racionais.
Cada vez mais creio que os animais ditos irracionais nos tornam menos humanos, e isso pode fazer toda a diferença: nos tornar seres que pensemos duas vezes antes de trairmos; de construirmos casas onde não devemos; de cometermos crimes com o mesmo ímpeto com que devoramos feijoadas completas; etc, etc, etc. 
Não pude deixar de deduzir: quando o cão Beethoven se soltou dos braços protetores de dona Iliair (uma, felizmente, mulher cada vez menos humana), e se deixou levar pelas águas turvas da enxurrada, tive a nítida e seguinte sensação: a de que o mundo ficara um pouquinho menos habitável. 
Sempre que posso faço aquele exercício mental algo banal que não leva a nada, mas que, de alguma forma, revela a amplidão de nossas solidões. Qual seja: se numa situação similar à vivida por dona Ilair Pereira de Souza, quem tentaríamos desesperadamente salvar das garras da morte? Não penso mais de dez segundos para chegar aos meus eleitos; dez a quinze pessoas, e, claro, o meu querido e amado golden retriever Martin.




  

  



6 comentários:

  1. Oi Rogério!
    Ontem em outro blog me emocionei com um moço que fez umas tirinhas para uma campanha contra o abandono de cães e hoje você reconstrói um momento que também me emocionou em toda esta catástrofe do Rio.Tenho um cão que quando me olha parece dizer confio em você e eu tentaria salva-lo também. Texto maravilhoso!

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  2. Ontem andando pelos lados do Jardim Botânico aqui no Rio vi um mendigo abrir uma sacola toda puida e tirar lá de dntro um saquinho cheio de ração para gatos e alimentar um gato malhado lindo que passava pelo muro do jardim. Lembrei do Beethoven. Grande Rogerio, bela exto. Abraços caninos.

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  3. rogério,
    belo texto, bela percepção.
    adorei a indagação: 'Qual seja: se numa situação similar à vivida por dona Ilair Pereira de Souza, quem tentaríamos desesperadamente salvar das garras da morte?'
    ... e perguntou tudo...
    abraço marcelo abreu

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  4. Não vi as imagens, mas muitos já as comentaram comigo. Pelo que sei, os salvadores de D. Ilair bem poderiam ser estranhos que não a conheciam. Mesmo "bestas feras" em processo, é possível que salvemos qualquer um instintivamente. Por isso, sua crônica me levou a pensar em quem se arriscaria por mim. Verdade ou não, é animador pensar em alguns nomes... Obrigado!

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  5. Querido Roger,
    eu TE SALVARIA sem dúvida alguma... SEU BLOG ESTÁ DELICIOSO, texto gostoso, bom de ler, de ouvir, a crítica no tamanho certo, sem indigestões, a bondade na dose exata da sua pessoa. QUE SAUDADE! Te amo muito. E SOU SUA FÃ! Que grande presente esse blog. Um beijo enorme.
    Denise Correa.

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  6. Gde Rogerio. Eu tb evito ao máximo ver essas imagens. Aqui em casa quase que peoibi a tal Globo News.O dia inteiro repetindo a mesma coisa. Das poucas imagens que vi a que sinceramente me tocou foi aquela do cão deitado (por 48 horas)ao lado da cova da dona.
    Abraço em vc! Gosto muito de seu texto!

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