domingo, 25 de março de 2012

A VISITA DE EU-AOS-TREZE-ANOS NUMA TARDE DE ANGÚSTIA (OU O IMPOSSÍVEL ACONTECE)

Pura rotina: o cronista se debate na angústia diária que lhe entra corpo adentro, sempre, sabe-se lá por que mistérios, entre uma e duas da tarde. Chega assim de mansinho, como quem não quer nada. Primeiro, um gosto amargo na boca que logo se transforma em náusea e desce esôfago abaixo, e, em poucos segundos, ocupa todos os seus espaços internos e externos.
Da mesma forma com que se infiltra nos meus rins e nos meus testículos, percebo-a deitada no sofá da sala; entre uma garrafa de suco de laranja e outro de maracujá na geladeira que ocupa a pequena cozinha; ou no rosto desolado do cachorrinho de gesso que amo tanto, comprado numa loja de  shopping vagabundo de Brasilia no fim do século passado.
Enfim, se algum desses institutos de pesquisa, desses que vivem se metendo na vida alheia, que vivem se metendo onde não são chamados, me ligar qualquer dia a essa altura da tarde, e me perguntar o meu estado civil, responderei: - Meu estado civil é angustiado. Vai encarar?
A mocinha, ou o rapazinho, do outro lado da linha, entrará em pane. As únicas respostas previstas no Manual de Instruções lá deles são solteiro, casado, divorciado e viúvo. Logo,  o rapazinho e a mocinha certamente nem saberão o que significa a palavra angustiado, entrarão em pane, e sucumbirão sobre a cadeira desconfortável na qual se assentam.
Haverá, claro, sempre mocinhas e mocinhos menos timoratos que insistirão: - Senhor, o senhor errou a resposta. Só existem quatro estados civis possíveis na vida social: solteiro, casado, divorciado e viúvo. Nosso manual de instruções não inclui a condição de angustiado. E, demonstrando certa agilidade mental, insistirão: - Claro, o senhor poderá ser um solteiro angustiado, um casado angustiado, um divorciado angustiado, ou um viúvo angustiado. Em qual dessas categorias o senhor se encaixa?
Mas a angústia que me arrebata me transforma num monstro misantropo. A ligação veio, merda, antes que pudesse tirar o pequeno comprimido de tarja preta da gaveta da cômoda do quarto, e tomá-lo – e, assim, sentir a angústia, esta marafona nada esquálida, descendo meu corpo abaixo como a água suja que escorre pelo ralo do banheiro durante o banho.
Logo, a minha angústia estava na potência máxima, e embora fosse, e seja, cidadão civilizado e adepto da gentileza máxima, e incapaz de matar uma barata se ela me cruzar o caminho numa viela insalubre do Rio de Janeiro, não titubeei, e atirei para matar: -  Porque você não vai tomar no olho do seu cu?  
Foi imerso neste estado de espírito que o interfone tocou. Pensei em não atender. Mas os porteiros do prédio onde moro sabem que estou em casa a esta hora da tarde, Então atendi. O seu Antonio Menezes, o simpático porteiro cearense que tem o mesmo nome e sobrenome que um dos meus tios paternos, falou num tom algo debochado: - Seu Rogério, tem um garoto aqui querendo falar com o senhor. É a sua cara. Parece até seu filho. Mas perguntei a ele se ele era filho do senhor, e ele disse que não. Ele disse que é o senhor em pessoa, que é o senhor quando o senhor tinha treze anos.
Diminuindo o tom de voz, na intenção, presumi, de que o garoto não o ouvisse, o seu Antonio Menezes acrescentou: - Deve ser maluco. Pensei até que fosse um menino de rua querendo lhe atazanar a vida, e nem mesmo lhe interfonar. Mas o garoto está bem vestido e se parece demais com o senhor. O senhor tem certeza de que não tem um filho por aí que o senhor não conhece?
Com a angústia me embolando cérebro, coração, estômago e instestinos, ainda tentei manter a calma: - Não, senhor Antonio Menezes. Sou tão pai de alguém quanto sou a reencarnação terrena de Santa Madalena.
Seu Antonio Menezes foi então direto ao ponto: - Então o que faço com o garoto? Mando subir, ou lhe aponto o caminho da rua?
Disse num átimo (resistir a uma provocação dessas numa angustiante tarde de meio de semana quem há de?): - Mande subir!
(Mas, diligentemente, quase em pânico, este cronista correu para o quarto, arrancou de dentro da gaveta da cômoda quatro pequenos comprimidos, os fez descer goela abaixo; quase engasgou; pegou um outro, sublingual, e enfiou embaixo da língua; engatou uma terceira em direção à cozinha, abriu a geladeira, sorveu meio litro de suco de maracujá light, e esperou a campainha da porta tocar. Tocou.)
Temi abrir a porta do apartamento como se temesse abrir a porta do inferno, e Cérbero me esperasse e me engolisse com sua bocarra de hálito fétido e cheia de dentes afiados. Mas abri (alguma coragem já me invadia; o comprimido sublingual tem efeito bem rápido) – e não era, meno male, Cérbero.
Era, pensei, o meu querido sobrinho (e afilhado) Gustavo, advogado, que mora em Salvador, e é filho de minha irmã Cecé.
Mas que diabos Gustavo viera fazer no Rio de Janeiro, sem avisar nem nada? E, mais grave ainda, como aquele galalau de quase 1,90 de altura e 28 anos de idade conseguira se enfiar dentro daquele corpinho de menino de não mais de 13 anos e que me olhava como se eu fosse o espelho dele?
Só me restou gaguejar: - Quem é você?
Ele: - Não me reconhece? Você mudou tanto assim? Eu sou você aos treze anos de idade.
Eu: - Quem mudou tanto assim foi você. Aos treze anos eu era muito mais gordo, os meus colegas tiravam onda de minha cara por causa disso. E você está magro demais para ser eu nos meus treze anos.
Ele: - Você se achava gordo. Na verdade, aos treze anos, você tinha exatamente este corpo que tenho agora.
Eu, completamente alucinado, tentei fechar a porta na cara daquele garoto maluco, mas não conseguia fechar a porta na cara daquele garoto maluco, e, entre um arfar de pânico e um grito sufocado, comecei a perceber: aquele garoto maluco tinha olhar extremamente familiar: é o olhar que eu vejo no espelho desde que me entendo por gente.
Mas não me entreguei, e disparei: - Você é um impostor. Deve ser algum bandidinho de favela que descobriu que se parecia comigo e quer me arrancar alguma grana. Tire o seu cavalinho da chuva quando a isso. Estou fodido, falido, quebrado, não tenho dinheiro algum. Como diria o meu pai, estou mais duro do que pau de tarado.
Ele: -  Você se lembra também o que ele dizia quando a gente estava numa situação confusa e complicada? Ele dizia que a gente estava mais perdido do que cego em tiroteio.
O garoto maluco parecia saber demais. Resolvi testá-lo. Com todos os medicamentos tomados já devidamente pulverizados nos meu cérebro, tomei-me de estado de espírito menos angustiado e menos persecutório, e me perguntei: - E se esse cara for realmente eu-aos-13 anos? A vida tem seus mistérios, pois não?
Deixei que ele entrasse. Mas não tranquei a porta, apenas encostei-a levemente. se eu-nos-meus-treze-anos tentasse me enfiar faca afiada na minha jugular, fugiria lepidamente, ou então me jogaria pela janela.
Já mais seguro (o que seria da humanidade sem a farmacologia antidepressiva?), lhe lancei um desafio: - Vou lhe fazer algumas perguntas a meu respeito. Se você responder a todas corretamente, talvez acredite que você seja eu-aos-treze-anos-de-idade. Combinado?
Ele sorriu ceticamente (e eu já tinha visto aquele sorriso cético antes milhares de vezes, porra!), pediu educadamente para sentar, e eu permiti. Disse que estava com muita sede. Perguntou: - Você tem guaraná Frattelli Vita ou gasosa de limão bem gelada? Ou Mirinda?
Fui categórico: - Deixei de beber refrigerante há anos. Você devia saber disso se realmente você fosse eu-aos-treze-anos. Tenho suco de laranja natural e suco de maracujá também natural, sem conservantes.
Ele: - Fazer o quê? Com a sede que estou eu bebo qualquer merda.
Servi-lhe do suco de maracujá, e ele bebeu, e ele fez uma careta horrível, e ele cuspiu tudo fora, sujando o meu tapete persa comprado a alguns tostões no Saara: - Tá azedo demais cara. Você está tão fodido assim que nem açúcar tem mais em casa?
Eu: - Não uso açúcar há anos. Só adoçante.
Ele: - Porra, cara, não era isso que eu queria ser quando crescesse. Você virou um chato, uma maricona que acha que trocando de veneno nunca morrerá. Não bebe mais refrigerante, não usa açúcar. Quantos anos você acha que vai viver mais por ter deixado de fazer essas coisas? Porra nenhuma. No próximo minuto você pode cair duro e preto no chão, como nosso pai dizia.
Resolvi interromper aquele papo que já começava a beirar o filosófico e o ontológico, e nem os tarjas pretas pareciam dar mais conta do absurdo da situação, e gritei: - Se quiser adoçante, tudo bem. Se não, vá se foder!
Ele: - Você acha que eu garoto de 13 anos tenho cara de tomar adoçante? Vá se foder, você, e trate de bater na porta de vizinha aí do lado, a Cida, que eu sei que fica em casa o dia todo, e tem um filho lindo chamado Bruno, e peça-lhe uma xícara de açúcar. Ou você acha que Cida, que tem cara de quem passou fome na infância no Nordeste, tem jeito de quem usa adoçante?
Deixei o rio fluir, os tarjas pretas me levaram a navegar em ondas de contos de fadas: fui bater na porta do apartamento vizinho. Cida meio desconfiada,  nunca antes batera na porta da casa dela, disse um simpático ´oi Bruno´ para o simpático Bruno, de dois anos e pouco de existência terrena, lhe estendi a xícara e pedi: - Você poderia me emprestar um pouco de açúcar? Só uso adoçante, e agora recebi uma visita que tem alergia a adoçante.
Cida sorriu. Bruno grunhiu alguma coisa incompreensível. Cida foi buscar o açúcar. Bruno me deu língua. Cida trouxe o açúcar. Bruno me deu tchau. Cida também. Agradeci. Voltei para casa.
Adocei então o suco de maracujá do garoto que dizia ser eu-aos-treze-anos. Ele bebeu. Pediu mais. Eu dei – e finalmente comecei o meu interrogatório.
Disse-lhe: - Se todas as respostas que você der forem corretas, eu deverei concluir que você é, de fato, eu-aos-treze-anos. Mas e daí? Você vai querer ficar morando comigo pelo resto da vida?
Ele: - Garotos de treze anos têm mais o que fazer do que conviver com velhos rabugentos como você. Vim apenas lhe fazer uma visita. Esse tipo de ocorrência, pessoas serem visitadas por elas mesmas em outros momentos da vida, não é incomum. Acontece sempre. O problema é que ninguém conta isso pra ninguém porque tem medo de ser chamado de louco. Uns babacas.
Eu: - Vamos às perguntas?
Ele: - Estou pronto.
Eu: - Qual o meu endereço residencial quanto eu tinha a sua idade?
Ele: - Avenida Rio Branco, 817, Jequié, Bahia. Confere?
Eu: - Quando comecei a falar, como eu chamava minha irmã Luíza?
Ele: - Guga.
Eu: - Qual o nome do meu primeiro grande amigo, o cara que no meio daquele bando de garotos pentelhos que me rodeavam me fez perceber que eu não era um rato, e sim um menino bacana e inteligente?
Ele: - Olival. Mas também teve o Renan. Não esqueça o Renan, gente finíssima. Lembra dele?
Eu: - Claro que lembro, e Renan é um amigo fiel até hoje. Mas quem pergunta aqui sou eu, porra! Como era o nome do meu melhor amigo na vida adulta, que morreu de câncer linfático em 2005?
Ele: - Manoel José Ferreira de Carvalho, arquiteto e livre pensandor.
Eu: - Quais os endereços residências que tive quando morei em São Paulo entre 1986 e 1997?
Ele: - Avenida Angélica, 361, apto 801, onde você morou quatro anos, e Rua Conselheiro Brotero, 898, apartamento 804, pertinho da Avenida Pacaembu, onde você morou sete.
Eu (entusiasmando-me com os acertos do meu eu-aos-13-anos): - Como era o nome da professora primária que ensinava portugues e ao escrever na lousa...
Ele: - Que porra é lousa?
Eu: - Lousa era o que a gente chamava antigamente de quadro negro. Pois bem, como era o nome dessa professora que ao escrever no quadro-negro a palavra possessivo, de pronome possessivo, ressaltava com extremo fervor (como se aquela informação nos garantisse em algum lugar do futuro um lugar no céu) que a palavra possessivo se escrevia com quatro esses (ou quatro sis), e dizia assim: - Nunca esqueçam, soletrem comigo, pê-ó-si-si-é-si-si-i-vê-ó? Si-si-é-si-si-i. Certo? Ouviram?
(Nota do cronista: no alfabeto baiano de minha infância esse era si, erre era , efe era , era guê, jota era ji, ele era , eme era , e ene era ).
Ele (sem piscar): - Professora Glorita Valois, e era ruiva, e tinha as faces cheias de sardas.
Eu: - Agora uma resposta muito difícil, e depois você vai embora, que eu já perdi muito tempo com você. A pergunta é: aos oito anos de idade eu tive a minha primeira relação sexual com uma pessoa bem mais velha. Lembra disso? Quem era essa pessoa?
Eu-aos-treze-anos aproximou-se do meu ouvido, e, discretamente, cochichou a resposta certa.
Dei-lhe um beijo na face. Ele corou. Era realmente eu-aos-treze-anos quem estava ali na minha frente, naquela hora.
Ele disse que ia embora. Revelou cansaço: - Não se ofenda, mas sou o eu-aos-treze-anos de muitas pessoas, e ainda tenho hoje muitas visitas a fazer.
(E pediu para ir ao banheiro)
Essa não exclusividade – pensava que ele era um eu-aos-treze-anos apenas meu – me abalaria mais na hora da angústia do dia seguinte, quando todos os meus demônios resolveriam novamente dançar creu e vomitar ferrões em brasa sobre os meus testículos.
Mas já começou a me abalar ali mesmo, e naquela hora.
Cheguei a pensar em convidá-lo para ficar mais tempo e conversarmos sobre coisas que vivemos juntos. Mas segurei a vontade. Tive medo de ser rejeitado. Ser rejeitado por eu-mesmo-aos-treze-anos seria um desastre que dispenso com fervor a essa altura de minha vida, quando evito novos traumas como vampiros evitam a luz do sol.
Eu-aos-treze-anos saiu do banheiro. Elogiou o sabonete líquido sobre a pia (presente de minha sobrinha Guida no último Natal): - Que cheiro maravilhoso!
Pediu um pouco mais de suco de maracujá com açúcar.
Abraçou-me com força. Desejou-me felicidades.
Foi simpático e encorajador: - Tudo vai dar certo, você vai ver!
Apressei-me em abrir-lhe a porta, e afirmei: - É para que você volte sempre!
Ele sorriu. Eu sorri, e insisti: - Volte sempre que puder.
Ele respondeu: - Não sei se será possível. Meus horários são muito apertados.
Antes de fechar a porta e de ele desaparecer pelas escadas, fiz última e desesperada tentativa: - Você tem e-mail?
Eu-aos-treze-anos fez cara de interrogação: deve ter pensado que porra será e-mail? – e sumiu escada abaixo.
Já estamos (eu e minha angústia) com saudades.  
  


domingo, 18 de março de 2012

A VIDA É UM POTRO SELVAGEM (OU PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FEIJOADA LIGHT)

No auge dos tenebrosos tempos da ditadura militar no Brasil (1964-1985), que todos os diabos a tenham, os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde criaram peculiar estratagema para burlar e, ao mesmo tempo, emular a draconiana censura que se abatia sobre o país. Tendo diariamente várias notícias de primeira página proibidas de serem publicadas, os editores passaram a colocar no lugar do que deveria ser ocupado pelo texto jornalístico alguns poemas do poeta português Luís de Camões ou triviais receitas de bolo.
Ok, a notícia não chegaria ao leitor. Mas a consciência de que algo impedira que essa notícia chegasse, e chegasse travestida de poema ou de receita de bolo atestaria para os devidos fins: por trás de cada obra prima de Camões e de cada trivial receita de bolo habitava o dragão asqueroso da censura militar então em vigor  em todos os setores da vida do país.
Talvez ainda haja divergências a respeito (nunca se sabe; a história do mundo flui e reflui como as ondas de  mares revoltos), mas é quase unânime a constatação: tal e qual a inveja, a censura é uma merda de altíssimos padrões de fetidez.
Por tabela: a autocensura – a capacidade de o ser humano fazer da censura elemento de anatomia interna ou externa, tipo baço, rins, pés, orelha de abano, ou barriga balonê, adquirida a partir da excessiva convivência com ditaduras obscuras – federia tão fortemente quanto a própria censura.
Estou no bloco dos que consideram censura e autocensura faces da mesma, e abjeta, moeda.
Mas, perdão leitores, nesta crônica de hoje, cometerei o delito de autocensurar-me, sem culpa (e sem autoaplicar-me vinte chibatadas ao amanhecer).
Ao contrário do que me perpassa o coração, mais dilacerado que um biscoito Globo na boca de um esfomeado, não chorarei minhas pitangas (embora minha horta esteja abarrotadas de pitangueiras ávidas para serem choradas). Nem chorarei as pitangas do caro leitor (quem, neste vale de lágrimas, não tiver as hortas cheias de pitangueiras ávidas para serem choradas, que atire a primeira azeitona).
Que São Carlos-Drummond-de-Andrade me perdoe, mas terei de parodiá-lo para explicar-me: não falarei de náusea, falarei de flores. Não literalmente. Metaforicamente.
Apropriar-me-ei do recurso utilizado pelos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde nos tempos da ditadura, e trocarei a censura pela autocensura. Em vez de escrever que todas as vidas estão mergulhadas numa merda abissal (o que varia é o quão abissal é a merda de cada um) publicarei receita de feijoada de frango light, de minha própria lavra, e, perdão pela imodéstia, de-li-cio-sa.
(Um pouco de circo não faz mal a ninguém).
Vamos à receita, caro leitor, pois da vida nada se leva, e caixão não tem gaveta:
Uma xícara média de feijão fradinho.
Três coxas e sobrecoxas de frango, devidamente separadas, sem pele e gorduras.
1 tomate (com pele, semente, e o que mais vier).
1 pimentão (da cor que mais lhe aprouver).
1 cenoura.
Seis dentes de alho.
Uma cebola (sem casca, por favor).
Uma xícara de coentro, aipo e cebolinha picados.
Temperos diversos em pó: manjericão, alecrim, salsinha, e outros tais.
Sal a gosto.
2 tablete de caldo de legumes light.
Azeite de oliva.
MODO DE FAZER
Primeiro ato
Na noite anterior, coloque a xícara de feijão fradinho numa vasilha com água até a tampa, cubra-a, e guarde na parte de baixo da geladeira. Na manhã seguinte, renove a água, e lave os feijões.
Segundo ato
Pegue as coxas e sobrecoxas de frango devidamente descongeladas, banhe-as em colheres generosas de azeite de oliva, sal, e os temperos de sua predileção. Não basta esfregar levemente os temperos nos pedaços de frango. Muna-se de uma faca rija e de ponta fina e, sem pejo, fure, a distâncias pouco maiores que um centímetro, a carne do frango. Com força e pathos.
(Projete nos pedaços de frango alguma parte do corpo de alguém que você odeia muito, tipo o chefe tirano, a vizinha que deixa a tevê ligada em alto volume até o amanhecer, o ex-namorado que lhe trocou por um bagulho qualquer, e teremos dezenas de furinhos, nos quais  você esfregará vigorosamente o sal e os temperos reservados. A ideia é que os temperos impregnem cada centímetro dos pedaços de frango. Operação realizada com sucesso, cubra-os hermeticamente com outro prato de iguais dimensões, e guarde na parte de baixo da geladeira).
Terceiro ato
Dia seguinte. Tire os pedaços de frango da geladeira e, numa frigideira pré-aquecida, regada a azeite de oliva pontilhado por cebola, alho, coentro, pimentão e aipo picados, e ponha-os para fritar. De ambos os lados. Por cerca de 15 minutos. Em seguida, reserve-os.
Quarto ato
Coloque algumas colheres de azeite de oliva na panela de pressão e deixe aquecer por dois minutos. Em seguida, acrescente alho em pequenos pedaços, cebola idem, coentro idem, cebolinha idem e um tablete de caldo de legumes light. Mexa tudo com uma colher pau para que os ingredientes não grudem no fundo da panela, e, também, para misturar os sabores.
Quando a mistura estiver suficiente quente e suficiente cheirosa, acrescente os pedaços de frango, um a um, sem pressa. Em seguida, com a colher de pau, faça com que os pedaços de frango pré-fritos e os novos temperos convivam harmoniosamente, mas freneticamente, por cerca de quatro a cinco minutos.
Feito isso, pegue o feijão de molho na água desde ontem, lave-o novamente, e o escorra de maneira que cada grão fique quase, digamos, enxuto. Na sequência, jogue o feijão na panela de pressão e, com a colher de pau, misture tudo exaustivamente por cerca de cinco a seis minutos. A seguir, despeje um litro e meio a dois litros de água pré-aquecida (a depender do tamanho da panela de pressão), espere toda essa mistura ferver, acrescente o segundo tablete de caldo de legumes light, e tampe hermeeticamente a panela.
Detalhe importante: quando o apito da panela de pressão começar a uivar, diminua a intensidade do fogo, e aguarde cerca de uma hora.
Sirva com arroz branco.
PS1:  Há condimento especial, pessoal e intransferível, que não aconselho ninguém a usar: um grãozinho de cicuta. Eu o uso, em doses homeopáticas. Não tenho pressa. De grão em grão a galinha enche o papo.
PS2: Não tem nada a ver com o tom gastronômico-existencialista desta crônica, mas não resisto à tentação de registrar. Hoje, manhã de domingo,  no Aterro do Flamengo, grupo minguado de anacrônicas feministas, nove ou dez, no máximo, entoam mantras incompreensíveis e distribuem panfletos sob árvore frondosa. Ao lado dessas  personagens´inesperadas, estende-se mural com cartazes ilustrativos do, digamos, espectro ideológico dessas criaturas.
Um desses cartazes ilustrativos me chama especial atenção, a ponto de eu voltar para checar se eu havia enxergado bem o que estava escrito. Sim, eu enxergara bem o que estava escrito, e o que estava escrito era exatamente o seguinte (devidamente registrado no meu celular, já que eu e minha memória temos brigado muito ultimamente): `O feminismo é a ideia radical de que as mulheres são gente.´´
(??????????????????????????????????????????????)
Sem comentários. Prefiro autocensurar-me outra vez,
(Mas confesso que, na hora em que avistei tal disparate, automático putaquepariu escapou-me e escafedeu-se pelos céus da Baía de Guanabara). 






  







domingo, 11 de março de 2012

O HOMEM QUE PARECE SABER DEMAIS (OU NINGUÉM DE MUCUGÊ QUE NOS ACUDA!)

Tenho cara de paisagem. De qualquer paisagem. De paisagem noturna. De paisagem diurna. Sei lá que porra de olhar e de atitude emano que as pessoas, sejam daqui, sejam dali, sejam dacolá, sempre acham que eu sei de tudo a respeito do lugar no qual viro paisagem.
É algo tão corriqueiro que às vezes induzo: alguém escreveu na minha testa ao nascer (e só eu não consigo ler), nos mais variados idiomas, o seguinte letreiro, sempre a piscar em alucinantes e frenéticos néons vermelhos: ESTE HOMEM TEM TODAS AS INFORMAÇÕES.
A ponto de já ter concluído, após centenas de evidências: uma das minhas missões terrenas é prestar informações ao próximo, não importa nem a hora nem o lugar. Mais: mortifico-me quanto não sei a informação que querem de mim. Sinto-me frustrado.
Dia desses uma bela garota de bicicleta me parou no Aterro do Flamengo, e me perguntou onde ficava a rua Fulano de Tal, uma rua da qual nunca ouvira falar.
Tentei negociar: - Você não sabe o nome de  rua próxima a essa? Talvez eu saiba onde fica a rua próxima a essa, e possa lhe ajudar.
A bela garota da bicicleta disse que só sabia o nome dessa rua e de mais nenhuma outra. Tive de admitir que fracassara, pedi desculpas, contritamente, à menina por não ter podido ajudá-la. Segui minha caminhada com amargo gosto de derrota na boca, que nem a abençoada água de coco do cearense Cícero, a melhor água de coco do Flamengo, me adoçou.
Pior ainda me sinto quando dou a informação errada, por estar distraído, e me inquirindo, bestamente, sobre o sentido da vida, no geral, e a morte da bezerra, em particular. Domingo desses, casal de simpáticos jovens me abordou: - Senhor, senhor, onde fica o Monumento dos Pracinhas?
Disse, sem pestanejar apontando na direção sul do Flamengo: - Podem seguir nessa direção que, em menos de dez minutos, vocês estarão lá.
Dez minutos depois a minha ficha caiu: eu trocara as bolas. Confundira o Monumento dos Pracinhas (que fica na ponta norte do Flamengo, depois da Marina da Glória) com o Monumento a Estácio de Sá, que, de fato, fica na ponta sul do Flamengo. Quase me autoflagelei. Mas preferi saída menos dramática e menos dolorosa: mudei o rumo da caminhada e segui na direção que havia apontado ao simpático casal, para admitir o meu erro. Mas não os encontrei mais, e a culpa me corroeu por algumas horas.
Certo final de ano dos anos 1990 viajei com grupo de amigos para Mucugê, nas brenhas profundas da Bahia, flor no pântano, um dos lugares mais bonitos do mundo.
No primeiro dia do ano, enquanto todos dormiam, após chuva colossal que varara a madrugada, percorri a cidade de cabo a rabo. De repente, um automóvel, digamos, de época, parou ao meu lado, e um motorista de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro, disparou: - O senhor sabe onde fica a pensão de Dona Fátima?
Enquanto ruminava ´pensão de dona Fátima, o caralho´, meus olhos captaram, displicentemente, alguns metros à frente, tosca placa pendurada à porta de casa igualmente tosca, na qual, em letras garrafais, em tons de vermelho-sangue, podia-se ler: PENSÃO DE DONA FÁTIMA.
Num átimo, respondi ao homem de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro: - É logo ali, senhor, umas quatro ou cinco casas mais à frente.
O homem de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro agradeceu, e acrescentou, enigmático: - Logo vi que o senhor era daqui.
Sem saber se a afirmação do forasteiro era lisonja ou desaforo, segui o meu caminho.
Nem sempre as forças ocultas representadas pelo ninguém de Mucugê ajudam a sacramentar a minha missão terrena de informar onde fica isso ou onde fica aquilo. Exemplo: no meio de madrugada escura de Praga, capital  da então Tchecoslováquia (hoje dividida em dois países: República Tcheca e Eslováquia), anos 1990, embriagado de vodca e de encantamento babaca por caminhar pelas ruas que Franz Kafka um dia caminhou, fui abordado por um casal com mapa e pequena lanterna nas mãos.
Tensos e nervosos, falavam numa língua nunca dantes ouvida por este cronista que ora vos escreve (tcheco? grego?  russo? hebraico? polonês? caralhês?) – e falavam de maneira tão frenética e tão galopante que mais pareciam duas gralhas bêbadas e cheias de cocaína até a última ponta do bico.
Tentei retrucar num inglês coloquial, mas o rapaz e a moça ignoravam o que eu dizia e continuavam a disparar metralhadora verbal recheada de vocábulos nos quais parecia não habitar vogal alguma.
Olhei para os lados para ver se não havia alguma tosca placa onde houvesse escrito em letras vermelhas e garrafais PENSÃO DE DONA FÁTIMA, mas não havia placa tosca onde houvesse escrito PENSÃO DE DONA FÁTIMA em lugar algum.
O rapaz e a moça continuavam falando aos borbotões, e eu insistindo no meu inglês coloquial. Queria, de fato, ajudá-los. Mas o ninguém de Mucugê não se manifestou, e eu desisti. Acelerei o passo, quase corri, em direção ao meu hotel. A certa distância, olhei para trás: o casal continuava parado no mesmo lugar, abrindo e fechando freneticamente o mapa e agitando atabalhoadamente a lanterna.
No hotel, demorei a dormir, e, quando dormi, sonhei: por minha culpa, por eu não ter sabido lhes dar a informação certa, o casal permaneceu perdido pelas ruas de Praga pelo resto da vida.
Duas semanas depois, redimi-me. Flanando pelo Hyde Park, em Londres, flagrei, sentado num banco a poucos metros de metros de mim, o, presumi, mais britânico dos britânicos – terno preto, sapatos pés lustrosos, bigodinho bem talhado, chapéu elegante. Era começo de tarde. Ele acabava de comer o lanche-almoço que acomodara em pequena caixa de plástico; jogou a caixa plástica vazia na lixeira ao lado; esfregou as mãos; levantou-se, e veio em minha direção.
Para o meu pasmo, num inglês britânico digno de ser aplaudido de pé, revelou-se totalmente perdido, e disse que não sabia como sair daquele lugar do parque e chegar até à rua: - Help me, please, sir!
O ninguém de Mucugê voltou a se manifestar. Olhei sobre o ombro homem do que achei ser o mais britânico dos britânicos, e li enorme placa em letras vermelhas e garrafais: EXIT.
Tentei caprichar no inglês, e aponto: - There, sir, there!
O homem que achei ser o mais britânico dos britânicos olhou-me como se eu lhe tivesse revelado a fórmula para que o pênis dele jamais perdesse o poder de ereção inda que ele chegasse aos 150 anos, pura gratidão, apertou-me a mão efusivamente, e bradou: - Thank you, sir. Thank you, sir. God save you!
Ele me deu as costas, e seguiu, determinado e feliz, quase saltitante, em direção à placa de Exit. Caminhava como se caminhasse em direção ao arco-íris. (Eu, hein, Rosa!)
Mais tarde, bêbado, no hotel, delirei na banheira: - Estaria aquele homem preso no Hyde Park havia dezenas de anos, e eu finalmente o libertara?
Resignei-me a esta sina, e não é uma sina que me aborrece, ou me apoquente. Na verdade, é algo que me faz crer que talvez eu sirva para alguma coisa nessa vida besta que abocanha a gente, mastiga a gente, e depois cospe o resto fora.
Manhã de sexta-feira, 9 de março de 2012, 7h45, esquina da rua Muniz Barreto com São Clemente, Botafogo, Rio de Janeiro. Estou na porta do metrô aguardando condução que me levará à Barra da Tijuca. De repente, velhusca simpática, me aborda aflita e quase sem fôlego: - A Rua São Clemente é esta aqui? Socorro-lhe: - Não, senhora, está é a Muniz Barreto. A São Clemente é aquela logo ali.
A velhusca simpática me agradece como se eu a tivesse rejuvenescido sessenta anos, a transformado na mais bela das belas, e a colocado no colo de um Brad Pitt com o pau bravamente entumescido. Ela sorri, e sussurra numa voz que parece não mais lhe pertencer, quase inaudível: - Obrigado, meu filho. Que Deus te proteja!
Quando digo em voz alta amém, amém, a condução que me levará à Barra da Tijuca para ao meu lado. Entro na Van prateada. Sento sozinho numa cadeira do fundo do veículo. Entre engarrafamento e outro intrigante preocupação me invade: - E se as pessoas começarem a me parar na rua para fazerem perguntas mais transcendentais, tipo a existência de Deus ou da vida após a morte?
Manhã de domingo. 11 de março de 2012: antes de sair para caminhar na Pista Cláudio Coutinho, na Urca com minha sobrinha Luiza, o marido dela, Jorge, e meu queridíssimo e amadíssimo sobrinho-neto Davi, com apenas um ano e cinco meses de existência terrena, desço para comprar jornal.
Na volta, dando olhada displicente nas manchetes de sempre, sou cercado  por velhusca ainda mais velhusca que aquela que me abordara na porta do metrô Botafogo.
A partir da cintura – tão delgada que parece prestes a se partir em duas, ou três, ou quatro – o corpo desta supervelhusca cadavérica se projeta totalmente para a frente, como se ela pretendesse se jogar à frente de algum automóvel a qualquer momento. (Ou talvez já tivesse se jogado e aquela ali fosse exatamente o ectoplasma dela? Sabe-se lá).
Tremo: tão velhusca, vai querer saber de mim se acho que ela viverá depois de morrer Ou talvez já esteja morta e queria apenas me sacanear, pois sabe que esta é uma resposta que nem o ninguém de Mucugê vai poder me soprar.
Mas ela simplesmente pergunta, numa voz que parece vir da ponta extrema do calcanhar, remotíssima: - Meu filho, a Enseada do Botafogo fica pra lá ou pra cá?
Relaxo: a pergunta é facílima. Digo-lhe: - Pra lá, senhora. É pertinho. A cinco minutinhos daqui.
A velhusca me olha com brandura; esboça um sorriso quase sarcástico; segura no meu braço com as mãos magras e úmidas e geladas; e volta a falar pela ponta extrema do calcanhar: - Ótimo, meu querido. Então em uma hora eu chegarei lá.
Atravesso a rua; entro no meu prédio; e, ao subir os sessenta degraus que levam ao apartamento de terceiro andar onde moro, sinto certo orgulho besta pelo fato de que tantas pessoas sempre me perguntem coisas.
Mas rogo: que continuem fazendo perguntas fáceis, assim como as dessas duas velhuscas saídas do nada que cruzaram o meu caminho nos últimos dois dias.
A propósito: será que a velhusca que falava pela ponta extrema do calcanhar já chegou à Enseada de Botafogo?
Ou mudou de rumo, e preferiu pegar o caminho inverso e voltar a se recolher em algum jazigo do Cemitério São João Batista para todo o sempre?
Ninguém de Mucugê, acuda-me!


  
  

domingo, 4 de março de 2012

A ALMA É TÃO MÓVEL QUANTO O AUTOMÓVEL (OU O DIA EM QUE EU BEIJEI O PAPA)

Há quem não acredite em almas. Eu acredito em almas. Em bilhões de almas pulando de galho, de corpo em corpo, eternidade afora, mundo afora. Mais: creio, peremptoriamente, na ideia de que várias almas nos habitam durante o decorrer das nossas vidas. Não sei por quanto tempo cada uma dessas almas nos incorpora e nos acompanha. Talvez dois, no máximo, três anos. Ou meses. Ou mesmo dias. Depois, elas se escafedem, e vão dar plantão em corpos alheios, até que alguém lhes delegue outra missão, outro corpo.
Uma espécie de rodízio, se o caro leitor me entende.
Ao acordarmos pela manhã, ou em qualquer outro momento do dia, a alma antiga partiu, pra não mais voltar, e outra alma nos ocupa. Transfusão de almas: no escurinho do cinema, no meio de um filme que nos emocione muito e que nos deixe em quase transe; no meio da leitura de um romance desses que nos fazem transbordar de êxtase e emoção estética; ou naquele momento máximo de relação sexual plena e bem-sucedida.
Ou, quem sabe, até no meio de um vagão de metrô superlotado. Ou naquela hora em que o torcedor deixa-se transir e grita gol numa final de campeonato.
Ou seja, almas trocam de corpos como nós seres humanos trocamos de maridos, de mulheres, de meios de transportes, e, eventualmente, de caráter.
Não. Essas almas não nos trocam por outros corpos num gesto de traição. Assim tem de ser. Alguém escreveu que tinha de ser assim. Está escrito. Talvez haja casos de almas que se apeguem mais a alguns corpos, e, romanticamente, queiram ficar nesses corpos por mais tempo. Sem chance. No way. Se a, digamos, escala determinar que a alma Xis terá de trocar Sergio Cabral, governador do Rio de Janeiro, pela prostituta Mimi Chavier, em remota cidade da Tunísia, assim terá de ser feito. Sem choro nem vela.
Almas voltariam aos corpos que um dia habitaram, numa espécie de revisita? Improvável. Pode ser que isso eventualmente ocorra, mas a chance é a mesma que a de se ganhar sozinho 50 milhões de reais na mega-sena. Ou a de alguém bater à sua porta e, quando você abrir dar de cara, com um mix de Jean Dujardin e Berenice Bejo. 
Almas são meio assim aeromoças e comissárias de bordo de seres humanos. Um dia podem estar aqui, no outro ali, no dia seguinte acolá. E, coitadas, não têm a quem apelar se, de repente, se descobrem e no corpo de um sujeito que matou a família e foi ao cinema comer pipoca. Ou numa freirinha impoluta na qual a ideia de virgindade eterna é tão inquestionável quanto o fato de a terra ser redonda como uma laranja azul.
Há casos de jet-leg, obviamente. Compreensíveis. Já pensou no drama daquela alma Z que foi dormir Giselle Budchen e acordou Angela Merkel? Ou da alminha que, no meio do encantamento de começar a fazer o corpo de uma pequerrucha qualquer começar a engatinhar no Recife, ser removida, irremediavelmente para uma ucraniana velhusca que agoniza com câncer terminal num bairro pobre e miserável de Kiev?
Não me digam que estou louco. 
Almas nos habitam como habitamos casas. Somos as casas das almas. Durante algum tempo dividem conosco os trapinhos, impõem alguma pequena ou grande reforma no imóvel ocupado. Ou, e isso acontece, nos mergulha em realidades extáticas, em felicidades de fotonovelas, em amores abissais, em loucuras colossais, e outras mumunhas mais.
Ninguém é uma só pessoa durante a vida. Ninguém tem alma única e fiel e exclusiva que lhe acompanhe ad eternum, ou até que a morte os separe. Fui várias pessoas durante a minha vida, e serei outras mais até que o fogo se apague. Centenas de almas me habitaram, e muitas outras ainda me habitarão.
(Você também, dileto leitor/a)
Ao tentar voltar no tempo, e contemplar – como alguém contempla o Muro das Lamentações, em Jerusalém, ou o sorriso de Monalisa, num corredor lotado do Museu do Louvre – o meu passado, ou os ene momentos do meu passado, há sensações de estranhamento inexoráveis. Mais dúvidas do que certezas sobre coisas que fiz ou deixei de fazer, que me levam a crer: a vida é grande peça de teatro, não obrigatoriamente de boa qualidade,  onde vivenciamos centenas de personagens, interpretados por essas almas itinerantes e erráticas.
Pela minha mobilidade geográfica, afetiva e profissional, creio que um número excepcional de almas me habitou nessas minhas cinco décadas de frenética existência. Sinto-me às vezes feito aquele ônibus no qual não param de descer e de subir passageiros (almas). Como se eu fosse veículo conveniente (confortável? desafiador? prático? com possibilidade de percorrer muitas vias, e chegar a vários pontos finais?)  para os passageiros/almas que entram e saem de mim durante a minha vida.
Talvez essa minha hipótese escalafobética, almas nos penetrando, sem hora marcada, como pegamos ônibus e táxis e vagões de metrô, explique a nossa combalida memória. Do que realmente lembramos do tudo que vivemos? Quase nada. Alguém será capaz de dizer o que estava fazendo na noite de 23 de julho de 1999? Ou em 22 de maio de 1980? Ou ontem, às 15h45?
 (Tem seriado atualmente na tevê cabo, The Unforgettable, que fala exatamente de mulher que não esquece nada, absolutamente nada, do tudo que viveu. Trata-se, evidentemente, de uma mulher doente: se lembrássemos tudo, exatamente tudo, que nos acontece durante a vida, enlouqueceríamos ainda mais do que já enlouquecemos, sem lembrarmos de quase nada).
Boa pergunta (minha e, provavelmente, do eventual leitor): quem faz essa escala de almas entre os bilhões de habitantes do planeta Terra? Gostaria de crer que fosse Deus, primeiro e único, o onipresente, o onisciente, o todo-poderoso. Embora creia em Deus, ou precise acreditar em Deus, acho que Deus não tem um disco-rígido (HD) suficientemente potente para manipular toda essa panaceia de algoritmos gigantescos e supercomplexos. Tipo:  almas que vão dormir na China e acordam na Bolívia; que entram no metrô de Tóquio e desembarcam num barco vagabundo do sul da Índia; que vão assistir a um filme de Woody Allen em cinema da Times Square e, antes que o filme acabe, transfunde-se e passa a ocupar corpo  de  mulher que está sendo estuprada em viela escura de Moscou.
O pai da matéria? Quem realmente manipula essas equações aparentemente erráticas neste intrincado jogo de desarmar que romanticamente chamamos vida? Chamem o ladrão.
Epílogo:  em 2006, em curta temporada de trabalho que passei em Salvador, cidade onde vivi entre os 15 e os 31 anos, revi pessoas que diziam me conhecer, que me contavam aventuras sexuais comuns, que me abraçavam com fervor, que me beijavam na boca. Com raras exceções, do lado de cá, emoção zero, nunca os tinha visto mais gordos: o meu cérebro registrava.
Certo dia, almoçando em restaurante do Pelourinho,  fui cercado por cinco mulheres que, à primeira vista, me pareciam totalmente desconhecidas. Para minha surpresa, gritaram em altos brados o meu nome, abraçaram-me efusivamente, e demonstraram entusiasmo em me rever tão pleno e tão contundente que fiquei sem palavras.
O que passava pela minha cabeça - enquanto essas mulheres me acarinhavam, me chamavam de ´meu querido´, e me diziam da imensa falta que eu fazia à cidade de Salvador desde que fora embora - era: - Caralho!, o que está acontecendo? Quem são essas loucas?
Demonstraram tamanha intimidade comigo que pediram ao garçom para juntar duas mesas, e sentaram ao meu lado. Em cinco minutos, (único) bingo: reconheçi nesse grupo de cinco mulheres, todas formadas em Enfermagem, segundo me disseram, pois não tinha a mais remotíssima ideia do que aquelas mulheres faziam da vida, descubro rosto familiar, e até arrisquei dizer o nome dessa mulher, e, que bom, acertei o nome dessa mulher.
Sobre as outras mulheres com quem passei as duas horas seguintes – elas revivendo experiências universitárias, existenciais e sexuais que vivemos juntos – até hoje não tenho a mais remota ideia de quem eram.
No meio do almoço, regado a comida baiana e a cerveja estupidamente gelada (era sexta-feira), uma dessas mulheres que eu não tinha a mais remota ideia de quem era me relembrou fato, digamos, picaresco que teria sido protagonizado por mim nos meus verdes anos.
Palavras dela: - Você era  o exemplo mais vivo de irreverência na universidade, naquela época de merda do auge da ditadura. Eu te adorava. Você fazia o que a gente não tinha coragem de fazer. Um maluco. Uma cena protagonizada por você que jamais esquecerei: quando o papa João Paulo II visitou a Bahia em 1980, eu estava no meio do povo, na Avenida Manoel Dias da Silva, na Pituba, com meu filho pequeno no colo, vendo o papa passsar. De repente, olhei para a varanda do primeiro andar de um prédio e vi você, cercado de amigos com garrafas de cervejas na mão, e vi você agitando as mãos como se fossem hélices, gritando ´João de Deus é lindo, João de Deus é lindo´, e disparando beijos estalados para o papa,  que desfilava no papamóvel  a pouco mais de dois metros da varanda onde você estava. Não vi mais nada: só gargalhava com a sua figura alegre e despudorada jogando beijinhos estalados para João Paulo II.
Preciso saber: se realmente o testemunho dessa mulher tiver algum fundo de verdade, que alma me habitava neste momento?
PS: e qual será o e-mail dela, dessa alma libertadora?