domingo, 27 de novembro de 2011

PARIS PODE SER AQUI NO MEIO DO CAOS DO RIO DE JANEIRO (OU O ELOGIO DA TRAIÇÃO)

O mar não está pra peixe. A amada Paris é logo ali. Há apenas o  Oceano Atlântico entre mim e Paris, e entre Paris e mim. Mas, ai de mim, Paris e eu não nos vemos há oito anos. Morro de saudades. Sei que é amor não correspondido. Mas não faz mal.
Amo Paris mesmo assim.
Mesmo sabendo: Paris não dá bola para mim.
Mesmo sabendo: Paris nunca escreve para mim.
Mesmo sabendo: Será  mais fácil camelo e elefante abraçados passarem pelo buraco de uma agulha do que este anônimo cronista do terceiro mundo conquistar algum dia o coração de Paris.
Fazer o quê? O amor é assim, incondicional. Sem temores. Sem sentido. Sem lógica aparente.
Se o amor é condicional não é amor – é tédio – é o fim do caminho. Pode devolver.
Amo Paris incondicionalmente.
Mesmo sabendo: a) tenho rivais sem conta no mundo inteiro.  b) o coração de Paris é disputado por milhões de terráqueos. c) não tenho a menor chance de algum dia conquistar o amor de Paris.
Paris é o meu homem inacessível.
Paris é a minha mulher inacessível.
Paris é a cidade que eu quero ter nos braços quando morrer.
Mesmo que more no Rio de Janeiro – e o Rio de Janeiro e Paris sejam, cada uma ao seu modo, as cidades mais bonitas do mundo.
Confesso a minha infidelidade, o homem é infiel, sou homem como outro qualquer, logo, a infidelidade é como se nos fosse segunda pele: amo o Rio de Janeiro e amo Paris com a mesma intensidade, e a mesma força dramática, e o mesmo frenesi no baixo ventre.
Já troquei o Rio de Janeiro por Paris várias vezes. Já troquei Paris pelo Rio de janeiro várias vezes. Agora parece que para todo o sempre.
Moro no Rio de Janeiro há quatro anos, depois de inúmeros flertes ao longo de décadas. Penetro e desbravo as ruas do Rio de Janeiro desde sempre. Adoro penetrar e desbravar as ruas do Rio de Janeiro. Mas também adoro desbravar e penetrar as ruas de Paris.
Meu sonho de consumo: ter e possuir e penetrar e desbravar Paris e Rio de Janeiro num ménage-a-trois  do balacobaco, transatlântico.
Aviso aos navegantes: esta é a crônica de uma traição anunciada, e celebrada.
Assim que der, assim que puder, assim que a sorte virar, assim que o mar voltar a estar para peixe, pego o primeiro avião e vou  (re)penetrar e (re)desbravar Paris. Mas, depois, biensûr, batata, pego o primeiro avião de volta e (re)penetrarei e (re)desbravarei o Rio de Janeiro.
Enquanto não dá, enquanto não posso, enquanto a sorte não vira, enquanto o mar não está para peixe, resolvi trair o Rio de Janeiro com Paris, em pleno Rio de Janeiro. Pode ser jogo perigoso. Pode virar peça de vaudeville. (Mais ou menos assim: trair Nair na casa de Joaquim. Ou trair Miguel na casa de Soraia.  
Mas viver não é, e sempre foi e sempre será perigoso?
Então a ideia é: trair Joaquim/Nair na casa de Miguel/Soraia sem culpa alguma. Em público. Em plena via pública.
Em manhã nublada deste novembro às vezes solar, às vezes sombrio – tal e qual eu tu, ele, nós, vós, eles: cometi adultério à luz do dia, cercado de cariocas por todos os lados.
Não, não me entenda mal. Não sou traidor exibicionista. Daqueles que fazem questão de revelar, e de sentir prazer em revelar, a Nair/Joaquim que está lhe traindo com Miguel/Soraia. Mas aconteceu. Acontece.
Em manhã nublada de novembro encaminhei-me para a Praça Paris, no bairro da Glória, nos calcanhares do centro do Rio de Janeiro, nas barbas da Cinelândia. É a mais parisiense das praças cariocas. Mais exatamente: trata-se de simulacro bastante crível de algumas praças parisienses.
(Neste ponto, o Rio de Janeiro parece ser mais generosa com Paris, do que Paris  com o Rio de Janeiro. Desconheço a existência de qualquer Place Riô de Janeirô na capital francesa).
A equação: 1) O nublar do céu. 2) A temperatura não exatamente tórrida, quase fresca. 3) A fonte luminosa na qual golfinhos emitiam potentes jatos d´água. 4) Passarinhos que depositavam dejetos em cabeças de estátuas impassíveis. 5) Garças longilíneas que voam rasante, daqui para ali, e dali para aqui. 6) Bancos nos quais velhos e jovens liam jornais ou simplesmente sentiam o tempo passar sem pressa em dolce far niente inesperado em meio ao caos das cercanias.
O resultado: atmosfera extremamente propícia  para que a (minha) traição se dê, sem sobressaltos, sem flagrantes inoportunos.
Penetrei e desbravei a Praça Paris quase uma dezena de vezes. Senti-me, de fato, em Paris, sem ir a Paris, e sem gastar um tostão sequer em Paris, e sem que a minha sorte tenha virado, e sem que o mar voltasse a estar para peixe.
Dei dez voltas completas pela Praça Paris. No fim da deliciosa caminhada, completamente satisfeito, inclusive sexualmente, (cidades e homens têm para mim o mesmo poder tantalizante),  voltei a pegar o caminho de casa.
Foi quando levantei a cabeça em direção a boreste – e não vi a Torre Eiffel – e não vi Montmartre – e não vi o Beaubourg – e não via a Catédrale Notre Dame de Paris.
O que vi, e me assustei com o que vi, caro leitor, foi o magnânimo e majestático Pão de Açúcar. Espécie de torre de vigia, sempre alerta, como se fizesse questão de presenciar, e revelar que presenciava, esse (meu) ato de traição pública.
Senti-me pouco à vontade. Tal e qual sentir-me-ia se, após noitada romântica com Joaquim/Nair, avistasse, e fosse visto, ao sair de algum hotel vagabundo da Lapa,  por Soraia/Miguel.
Fazer o quê? Fiz cara de paisagem, dei de ombros, e voltei a flanar pela Praça Paris.
Problema: nesse flanar derradeiro, não consegui mais me concentrar em Paris, e motivos havia para não mais me concentrar em Paris.
Ao olhar para fora das grades que cercam a Praça Paris, onde a Glória fervilha;  e vestígios fétidos da Lapa se insinuam; e mendigos ao deus-dará dormem sob marquises ou sob lugar nenhum; e o vigor e o regurgitar frenéticos do centro da cidade do Rio de Janeiro já se fazem tangíveis, reencontrei novamente o Rio de Janeiro que amo (tanto quanto Paris): caótica, confusa, barulhenta, miserável, malcuidada, mas, ainda assim, bela, belíssima.
Paris e Rio de Janeiro são mulheres/homens belos/belas de belezas de naturezas absolutamente diversas. Amo, e amarei, ambas para sempre, de maneira equânime.
O mal-estar ao olhar para o que acontecia fora da Praça Paris adveio do seguinte fato: avistei, a poucos metros uns dos outros, taxistas que desciam dos seus carros amarelos e urinavam em árvores, nas grades da praça, e onde lhes dessem na têmpera.
Sugestão ao alcaide desta combalida, mas esplendorosa urbe: distribuição de fraldas geriátricas para os taxistas do Rio de Janeiro.
Caro leitor: a saudade de Paris bate forte, mas a possibilidade de ir até lá  nos tempos porvir é mais remota que a última batucada? Visite a Praça Paris, na Glória.
Vale a pena, ainda que, entre reminiscência e outra de Paris, o olhar do caro leitor possa flagrar a genitália desnuda de alguma taxista fazendo xixi em via pública.  
Sejamos mais flexíveis: esse choque, digamos, paisagístico será salutar. O mundo nunca foi; não é; nem nunca será coisa só, e sólida. A vida, idem. Nós, também.
Ou seja, precisamos de Paris. Precisamos do Rio de Janeiro.
Confesso: sou dependente químico de uma e de outra. Uma – em veia do braço direito. Outra – em veia do braço esquerdo.  
Ou do jeito que vier eu traço. A vida é curta.










domingo, 20 de novembro de 2011

ANJOS DO INFERNO IRROMPEM A MADRUGADA (OU SONHO DE UMA NOITE DE SOLIDÃO)


Houve um tempo no qual – romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite – a luz ia embora – e, também romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite, a luz voltava.  Hoje se diz, sem romantismo algum – quando de uma hora para outra no meio da noite a luz dá lugar às trevas: faltou energia elétrica.

Verdade que, já nessa época, certo locutor de rádio – tirado do ar de uma hora para outra no meio da noite pelo fato de a luz ter dado lugar às trevas – dizia, quando voltava a respirar e a falar, com a solenidade de porteiro de mausoléu:  ‘Estivemos fora do ar por alguns instantes devido à falta de energia elétrica nos nossos estúdios’.

Falta de energia elétrica, o cacete. Na cabeça de pudim desse meninote fascinado com esse jogo de luz e de trevas, esse locutor de rádio – que tirava todo o romantismo do fato de a luz ir e voltar quando bem entendesse e quisesse – era pusilânime idiota.

O que intrigava a cabeça de pudim desse meninote, com o que de fato a cabeça de pudim desse meninote queria se intrigar, era o fato aparentemente inexplicável de que a luz fosse embora e que logo depois a luz voltasse, assim como se tivesse ido ao cabeleireiro, à padaria comprar pão, ao cinema para assistir Mary Poppins, com a chatíssima  Julie Andrews.

Afundava-me em caraminholas: o que a luz estaria fazendo naqueles minutos nos quais ia embora, enquanto nós, para não soçobrarmos nas trevas, acendíamos velas e candeeiros – e rezávamos para que aquela escuridão não durasse para todo o sempre?

Havia até mesmo certo tio-bastardo-muitíssimo-querido (filho de avô paterno com certa mulher-da-vida) que aproveitava esses momentos em que a luz ia embora e, saído das sombras onde morava nas cercanias, nos contava mil & uma histórias. Todas assustadoras. Todas escabrosas. Almas penadas saíam das brenhas e se materializavam embaixo de nossas camas. Mulas-sem-cabeça aproveitavam a escuridão para entrar por baixo de nossas portas e esfregar seus rabos imundos nos nossos narizes.

Era como se quando a luz fosse embora, o mundo parasse por algum tempo – ou morrêssemos por algum tempo – e, mortos por algum tempo e com tudo ao redor parado por algum tempo, deparássemos com esse tio-bastardo-muitíssimo-querido de olhos incrivelmente verdes e de cabelos incrivelmente negros que nos escancarava a porta do inferno – e na cabeça de pudim desse meninote assustado, mas fascinado, a luz ia embora em todos os cantos da Terra e em todos os cantos da Terra tios-bastardos-muitíssimo-queridos também saíam das sombras para nos escancarar todas as portas do inferno.

Ah, mas quando a luz voltava, ah, mas quando a luz voltava, como era verde o nosso vale, era a nossa redenção: eu, pais, irmãos, vizinhos, e – presumia – todos os habitantes  da Terra urrávamos e gritávamos e berrávamos e quase explodíamos de alegria – celebrávamos o fim das trevas.  

Essas algazarras humanas absolutamente carnavalescas e dionisíacas que celebravam o fim das trevas e atestavam para os devidos fins que a luz voltara (embora todos soubéssemos que a luz ia embora outra vez quando menos esperássemos) seriam alguns dos momentos  mais sublimes de toda a minha infância.

Oops!  Tudo escurece de repente neste meio-de-noite-quase-fria-de-novembro no Rio de Janeiro, que, mergulhada em abissal escuridão, some do mapa. A única coisa que reluz na sala escura é o teclado do computador onde escrevo estas palavras – e, pela janela, avisto grupo foliões-fora-de-hora (ainda não é carnaval; ou é?) fantasiados de anjos, com asas, mas com chifres. Esses, digamos, anjos do inferno, cantarolam os seguintes versos: ´Rio de Janeiro/Cidade que me seduz/De dia falta água/De noite falta luz.´ (*)  

Vou à janela e cantarolo animadamente a marchinha carnavalesca com o grupo de foliões-fora-de-hora – mas não consigo controlar o meu pensamento – e pergunta que não queria calar me arrebatou: faltou energia elétrica nos nossos estúdios, caro leitor, ou a luz foi embora – mas logo voltará?

E, de fato, a luz foi embora – mas logo voltou. A sala escura se ilumina novamente. São duas da manhã, mas é mais forte do que eu: vou até a janela novamente, mas os anjos do inferno não cantam mais marchinha carnavalesca alguma. Sumiram. Escafederam-se. Mas avisto o Cristo Redentor novamente iluminado, e, a bordo de alegria que não consigo controlar, que preciso extravasar, grito e urro e berro para todo o Baixo Botafogo acordar.

O interfone toca. Ouço a voz familiar de Francisco, o porteiro da noite: ‘Está tudo bem, senhor Geraldo?’

Esbravejo, indignado: ‘Geraldo, o cacete, mas que Geraldo porra? O  meu nome é...’

Merda! (olho ao redor e vejo a cama vazia): acordei – e todas as luzes da casa estão acesas.

(*) Versos da marchinha carnavalesca Vagalume, de Vitor Simon e Fernando Martins, grande sucesso do Carnaval de 1954, nas vozes do grupo Anjos do Inferno.







domingo, 13 de novembro de 2011

NEM SEMPRE DEUS ESTÁ SOLTO (OU AS TRÊS MARGENS DO RIO)



Rio 1: O jovem ator enfrenta  face a face, ombro a ombro, palmo a palmo, cabeça a cabeça, o sempre soberbo Harildo Deda. É diálogo visceral do espetáculo A Casa de Eros, dirigido por José Possi Neto.  O embate acontece no Teatro Santo Antonio, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. A plateia mal consegue respirar diante de momento teatral tão absurdamente arrebatador: aplausos em cena aberta pipocam aqui, ali & acolá. (Era 1996).
Ao final do espetáculo, em evento comemorativo em torno dessa auspiciosa estreia, dirijo-me a esse jovem ator. Parabenizo-o pelo fato de não ter se intimidado com o fato de contracenar com Harildo Deda, um dos mais importantes atores brasileiros. Ele parece demonstrar certo  constrangimento diante de meu rasgado elogio, e sussurra meio timidamente: - Obrigado!
Rio 2: Outro jovem ator, entre os muitos outros atores do Bando de Teatro Olodum, se destaca em entrevista que este repórter fazia com o grupo, por conta de série de reportagens que então realizava em Salvador para o jornal Correio Braziliense.  Pude constatar rapidamente: ok, todos muito belos, todos muito faceiros, mas afundavam-se em invariáveis timidezes. (Era 1999).
A exceção era exatamente esse outro jovem ator. Diante de minhas perguntas, esbugalhava os grandes olhos, e, risonho e franco, tinha sempre resposta engatilhada na ponta da língua. Não pude deixar de pensar com os meus botões: - Danado de inteligente esse carinha! Vai dar muito o que falar! O tempo passou na janela (É 2011).

O Rio 1 e o Rio 2 desaguaram no mar. Melhor: viraram mar. Tornaram-se dois dos mais consagrados atores brasileiros da primeira década deste século 21. Chamam-se, respectivamente, Wagner (Moura) & Lázaro (Ramos).

(E este Rio 3 que ora vos escreve? Bem, este terceiro rio que ora vos escreve continua rio. Gosto de ser rio – e rio caudaloso, espero – e rio que  continua, basicamente, caminhando e escrevendo, e, como diria aquela popular canção de Geraldo Vandré, seguindo a canção.
Mar à vista? Talvez sim. Talvez não. Nunca se sabe. Nem sempre Deus está solto).




segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A VIDA É CAMINHÃO SEM FREIO DESCENDO LADEIRA ABAIXO (OU A GARÇA E O RATO E O HOMEM)


Primeiro ato: O Rato e a Garça

Às margens da baía de Guanabara, naquela curva de terra e de mar e de ar que marca a fronteira entre os bairros do Flamengo e do Botafogo, ouve-se guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante (ab-so-lu-ta-men-te aterrorizante). Imagino: talvez seja alguém que reaja ao ataque de assaltante carnívoro, ou de vampiro ávido por sangue e adrenalina – enfim, alguma ocorrência dessa natureza e desse pathos.

Viro então a cabeça na direção de onde vem o guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante: então flagro bela e esbelta e altaneira garça que acaba de bicar com fúria titânica pequenino rato (tão pequeno que posso presumir: trata-se de rato-ainda-quase-bebê) – e tenta engolir esse rato-ainda-quase-bebê gulosamente, vorazmente – como se não houvesse amanhã, nem depois de amanhã, nem ano que vem, nem século que vem, nada, nada além.

Mesmo à distância, percebo: o rato-ainda-quase-bebê luta com todas as pequenas forças que lhe restam para não mergulhar no túnel que o levará à caverna escura dessa garça gulosa da qual nunca sairá. Tenta bravamente se livrar  desse pesadelo, e, tal e qual os desenhos animados à la Walt Disney de antanho, correr de volta para os braços cálidos da mamãe-rato.

Desacelero o passo, mas não o cérebro. Imagino: cenas assim (de pura e inoxidável natureza selvagem, de puro e inexorável terror, disponíveis em vários canais de tevê cabo) seriam completamente banais, extraordinariamente comuns desde que o mundo é mundo; desde que o homem é homem; desde que as garças são garças; desde que os ratos-ainda-quase-bebês são ratos-ainda-quase-bebês – mas isso, merda, não me alivia.

Não estou só nesse pasmo e nesse não alívio diante dessa rotineira tragédia do mundo animal. Duas ou três senhorinhas também diminuem o ritmo da caminhada, viram os pescoços em direção a essa  inesperada ocorrência, e murmuram dois ou três ‘ohs’ sinceros. (Surge em cena até mesmo rapaz com cara de parvo que registra todo o episódio com a câmera do celular).

Em desvairado delírio romântico, tudo em mim passa a torcer desesperadamente para que o rato-ainda-quase-bebê escape do bico afiado dessa garça tirana, se enfie novamente nas pedras que margeiam o mar da baía da Guanabara e, à la Walt Disney, corra para os braços cálidos da mamãe-rato.

Torço em vão: meu próximo olhar, dois passos adiante, já flagra pequeno volume, do tamanho exato de rato-ainda-quase-bebê, a descer devagar, e aos sacolejos, pelo pescoço fino da garça tirana – donde posso, tristemente, concluir, com um travo amargo se espalhando pelo céu da boca: aquele rato-ainda-quase-bebê acaba de entrar no túnel que o levará diretamente ao inferno. Sem escalas.

Segundo ato: O homem e a garça

O cearense Cícero, a bordo de detonado furgão azul-anil, vende água de coco na fronteira sul do Flamengo, quase Botafogo, desde sempre. É homem de bom coração. Vende-me, às vezes, fiado o precioso líquido que comercializa quando esqueço os três reais necessários para a compra em casa, ou em lugar nenhum. Mas, sujeito probo que tento ser, sempre lhe pago o que devo.

Fiado ou à vista, sou freguês desse cearense baixote, que, estranhamente, gerou o galalau Wellington, o filho de quase 1,90 cms de altura, e que o ajuda na faina diária.

Cícero e eu conversamos sobre assuntos triviais, tipo:
1) os ladrões de bicicleta, ou a pé, que assaltam turistas e nativos diariamente;
2) os agentes da prefeitura que, em todo começo de ano, o ameaçam de tirá-lo do local onde trabalha, e no qual tem a melhor vista do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e a boca banguela da baía de Guanabara emoldurando tudo; mas, estamos no Brasil, tudo acaba em pizza: em troca de alguns dinheiros, os deixam em paz – pelo menos até o ano seguinte;
3) dúvidas pueris; dia desses ganhou uma fruta, que afirmava desconhecer, de certo freguês abastado, que o encantou, mas que não sabia como diabos se chamava aquela bendita fruta; ao abordá-lo para lhe pedir a santa água de coco de cada dia, Cícero sacou saquinho pardo e amassado do fundo do furgão azul, abriu-o, e me arguiu: - Que fruta é essa? O senhor conhece? Era trivial ameixa, mas ele nunca vira antes ameixa in natura, e lhe disse peremptoriamente: - É uma ameixa! Ele estranhou: - Ameixa? Mas ameixa não é aquela fruta preta, seca e enrugada, enfiada naquelas latas que vendem em supermercados de gente fina? Quase sorri da observação arguta, mas ingênua, do meu amigo circunstancial, e lhe revelei: - Antes de virarem aquelas frutas secas e enrugadas que são trancadas em latas e vendidas em supermercados de gente fina, como você diz, elas, as ameixas, são assim, vermelhas ou pretas, tenras e suculentas, sem nenhuma ruga, e, melhor de tudo, deliciosas.

O pai de Wellinton sorriu desconfiado, agradeceu a informação, e parti de volta para casa feliz: adoro socializar informação.

Além de vender água de coco, Cícero é homem que ama os animais e, principalmente, as garças que fazem ponto diuturnamente nas pedras que margeiam a baía de Guanabara, entre a enseada de Botafogo e o Aterro do Flamengo. Para passar o tempo nos dias de menor movimento, ou até mesmo nos de grande movimento, enfia  vara de pescar entre as pedras onde o Oceano Atlântico arrebenta e espera que algum peixe lhe bique o anzol.

Os peixes que pega são invariavelmente pequenos – e, noblesse oblige, não os leva para casa (para fazer boa fritada e comer com farofa de banana). Os peixes pequenos que Cícero pega têm outro destino: alimentar as garças, que, acostumadas e encantadas com esses mimos, fazem fila sobre as pedras das cercanias, com único intuito: abrir o enorme bico para acolher sofregamente o petisco que ele acabou de pescar. Ordeiramente, assim que cada garça abocanha o pequeno peixe pescado pelo, digamos, bom-samaritano-delas, voa rapidamente, ainda digerindo a iguaria recém-presenteada, e cede a vez à próxima garça faminta.

Sempre que vejo esse ritual incomum, e benfazejo, imagino: uma dessas garças teria sido aquela garça-vilã do primeiro ato; aquela que, sem dó nem piedade, abocanhou aquele ratinho-quase-bebê, e o devorou. Pode ser que sim. Pode ser que não. As garças parecem todas iguais; não há como saber se, entre aquelas belas garças que agora esperam ordeiramente a iguaria que o bom Cícero lhes destinará, esteja aqueloutra, a vilã, a tirana, a pérfida do primeiro ato.

E se estiver, caro leitor? Garças se alimentam basicamente de pequenos peixes que – antes de Cícero existir, ou quando Cícero não aparece para vender água de coco e pescar peixe para as suas garças queridas – são simplesmente bicadas em voos rasantes sobre a superfície do mar da Baía de Guanabara. Simples assim.

A questão é: trapaças da sorte, esses voos rasantes podem resultar em nada, e, sem Cíceros por perto, as garças têm de ser criativas para mitigar a fome que as devora. E, certamente, a garça do primeiro ato, era garça que vivia situação assim: limite. Não devorara  o rato-quase-bebê por maldade, mas por não encontrar o peixe que a alimentaria, ou seja, por falta absoluta de opção.

Moral desses dois atos, aparentemente antípodas, mas exemplarmente complementares: ao contrário de nós, seres humanos ditos civilizados, os animais, ditos não humanos e não civilizados, não matam pelo prazer de matar – como nós humanos o fazemos desde que o mundo e o mundo; e, pelo andar da carruagem, o faremos até o fim dos dias – e sim pela imperiosa necessidade de continuarem vivos.

Epílogo – O rato, a garça, o vendedor de
cocos e um homem que sonha

No céu cor de fogo-que-se-apaga-lentamente da baía de Guanabara (a noite começa a escapulir), ratazana gigante, tão grande quanto o Pão de Açúcar bem ali ao lado, emerge do fundo do mar. Tem a bocarra escancarada e faminta e ávida.

Abocanha tudo que encontra pelo caminho:
a) barco com dois pescadores, e um garoto loiro que carrega pequeno cachorro vira-lata no colo;
b) senhora visivelmente septuagenária que, com largas braçadas, nada da praia do Flamengo até a enseada do Botafogo;
c) uma garça maior, beeeeeem maior do que as que Cícero alimenta – e essa garça beeeeeem maior que as que Cícero alimenta desce a goela imensa da ratazana como se descesse tobogã do Parque Nicolândia, em Brasília;
d) Cícero e Welllington; o pai puxa do cinto o facão com que corta cocos, e, em vão, ameaça a ratazana gigante, e cada vez mais gulosa, mas é devorado implacavelmente, com filho, facão e tudo;
e) pai e filho devidamente deglutidos, a ratazana grande, e cada vez mais gulosa, vem, célere, o cão chupando manga, indócil, olhos esbugalhados que parecem arrancados da Maga Patalogika,  lambendo os beiços de prazer e de lascívia e de tesão em minha direção.

A ratazana gigante e gulosa e ávida está cada vez mais perto. Destemida, sem medo de abalroar os carros que  começam a circular a toda velocidade pelo local, atravessa as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo.

A ratazana gigante e gulosa e ávida não se intimida: cruza velozmente as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo, e devora, num piscar d´olhos, caminhão de mudanças da Lusitana, e Ford Ka púrpura, dirigido por mulher, que, apavorada, clama por todos os seus santos de devoção (e consigo ouvir os clamores por São Judas Tadeu, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo, Santo Expe...)

Em vão. Nenhum santo ajuda. O carro que dirige desce a goela abaixo da ratazana agora cada vez mais gigantesca.

Fim de jogo: agora não há mais nada a nos separar. Entre mim e a ratazana superlativa apenas o vazio. Ela tenta me puxar com a língua: sinto o cheiro fétido que vem de dentro dela, e sinto que começo a atravessar o umbral do inferno...

De repente, tudo some. A primeira coisa que enxergo é a grande cortina estampada da grande janela, que lembra os teatrinhos dos circos mambembes da minha infância; depois diviso a estante de livros, e decifro, feliz, a lombada de um deles, onde flameja o número 2666; em seguida, ouço o cantos dos pássaros. Eles pulam, serelepes e radiantes, pelos galhos frondosas da mangueira que viceja sem parar a dois metros do meu quarto, às margens plácidas da Praça Mauro Duarte, no Baixo Botafogo.

Amanhece no Rio de Janeiro, caro leitor. (Bom dia!).