segunda-feira, 26 de setembro de 2011

HELENA BOVARY KARIÊNINA (OU PERDOA-ME POR ME TRAÍRES)

Nestas bandas do Ocidente, a condenação da traição amorosa tem a idade do mundo. A Bíblia Sagrada, o pai de todos os best-sellers, escrito sob encomenda de um Deus cheio de ira, estabeleceu rigoroso índex proibitorium. Em dez tópicos, impunha as normas que o ser humano deveria seguir,  se não quisesse arder no fogo do inferno. No sétimo item, esbraveja-se: ´Não adulterarás!´ (Donde se pode inferir: o adultério seria contra-indicado  aos homens e às mulheres).
No décimo item, essa inferência se dilui: brada-se contra (quase) todos os tipos de cobiça: à casa do próximo; aos servos e às servas do próximo; aos bois e aos jumentos do próximo; aos pertences do próximo; à mulher do próximo. (Donde se podem extrair procedentes questões: 1. A mulher poderia cobiçar o homem da próxima? 2. O adultério seria prerrogativa masculina?)
Conclusão lógica e dedutiva, pelo registrado nesses milhares de anos – de mais trevas e menos luz – que nos contemplam: 1. A mulher não poderá cobiçar o homem da próxima; 2) O adultério será contra-indicado às  mulheres.
Ocidentais, herdeiros, bastardos ou não, dessa ordinária moral cristã (ok, Freud e asseclas vêm tentando, com êxito, deletar essa equação bestial dos nossos corações e mentes),  incorporamos, inconscientemente ou não,  o torpe raciocínio bíblico. Deu nisso: homens traem com mais naturalidade que mulheres. Mulheres traem reativamente;  ou por perceberem o óbvio: o adultério nasceu para todos.  
Não será necessário recorrer-se à trajetória trágica de Anna Kariênina, imortalizada no seminal romance homônimo de Tolstoi, para iluminar as diferenças entre o trair feminino e o trair masculino (Ok, Flaubert criou a libertina Emma Bovary, mas depois proclamou, e acredito no que disse: `Madame Bovary c´est moi!´). Há cerca de dois anos, sentei em mesa de bar do Leblon com Helena (nome fictício), amiga querida que não via havia muito tempo e que mora na Europa há décadas. Bem casada, profissional exitosa, conta bancária acima da média, analisadíssima, caiu em prantos após a primeira dose de caipivodca de  morango. Abriu-me o coração: sofria muito, muuuuuuito. Motivo: do nada,  surgiram-lhe dois amantes, ambos bons de cama, bonitos, bem-sucedidos profissionalmente, e loucos por ela.
Perguntei a Helena se não poderia fazer escolhas. Talvez se separar do marido. Foi enfática: - Não consigo tomar nenhuma decisão. Gosto de ter três homens loucos por mim. Mas morro de culpa. Toda mulher tem certa fascinação por esse tipo de situação que estou vivendo. Não devem ter.  É uma merda!  Estou arrasada!
Helena não tomou decisão alguma. O corpo que lhe pertence, tomou. Adoeceu. Há dois anos passa mais tempo em hospitais ingleses e franceses do que em casa ou no trabalho – ou na cama do agora único amante (o outro conseguiu descartar).
Dia desses, Helena, aos prantos, me confessou, ao celular, diretamente de Londres: - O que será de mim? Se tivesse sido traída pelo meu marido, que é que mais acontece por aí, minhas amigas estariam me paparicando. Mas não. Sumiram. É mais confortável ser traída do que trair, meu querido!
Haverá controvérsias. Cartas para a redação.

  





 

terça-feira, 20 de setembro de 2011

AGENOR, O TAXISTA MAIS VOMITADO DO RIO DE JANEIRO (OU CADA UM COM SUA SINA)

No meio de uma tarde vazia, tão clara, sem fim, virei o pescoço no burburinho enlouquecedor da Rua Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. Acabara de comprar alguns remédios fitoterápicos contra a alta ansiedade, receitados por certa sumidade da medicina alternativa a quem minha analista resolveu me enviar, e queria fugir desesperadamente daquele caótico e eterno transe que marca esse pedaço do Rio de Janeiro. Era verão. Fazia calor infernal. No relógio digital ao meu lado, visualizei: 40 graus. A vida estava uma merda. Não poderia dar outra: dentro de mim, e ao redor de mim, todos os demônios interiores se reuniam em concorrido conclave para me enlouquecer – e eu virei o pescoço no burburinho enlouquecedor da Rua Figueiredo de Magalhães para pegar o primeiro táxi que passasse e que me levasse para a sacrossanta paz do (meu) lar.
Ao levantar o braço para pedir que táxi que se aproximava parasse – e me tirasse daquele inferno e daquela panaceia de barulhos, buzinas, uivos, vozes gritadas estridentemente aos celulares, e o diabo a quatro –, atingi em cheio o rosto de certo senhor  visivelmente octogenário, o que fez com que o par de óculos que o senhor visivelmente octogenário usava fosse parar na sarjeta próxima à calçada, entre latinhas de cerveja vazias, pontas de cigarro, camisinhas usadas, papéis de bombons, cocôs caninos e humanos, e lixos diversos. O velhote me praguejou até a enésima geração, e nem o fato de lhe pedir desculpas, com delicadeza de gazela de romance de José de Alencar, o fez menos feroz.
Parti, em seguida, para o fétido canto de sarjeta onde o par de óculos do velho visivelmente octogenário aterrissara, e, ainda bem, nada fora danificado: as lentes e as hastes estavam nos devidos lugares. Peguei-o; limpei-o cuidadosamente com a flanelinha que sempre carrego na bolsa (para limpar os meus próprios óculos); e o devolvi, são e salvo, a bordo do mais colgate dos sorrisos, para o senhor visivelmente octogenário. Mas, nem assim, ele me perdoou. Arrebatou o par de óculos das minhas mãos, e saiu em disparada; mas, antes, praguejou mais uma vez até a minha enésima geração: -   Vá pra casa do caralho, seu magrelo tatuado de merda!!!
Fazer o quê em situações assim? Nada a fazer, caro leitor, a não ser continuar respirando – e eu continuei respirando, e sinalizando, àquela altura desesperadamente, para que algum táxi parasse e me levasse, pelo amor de Deus, me levasse, até a sacrossanta paz do meu lar.
Finalmente, operou-se o milagre: um táxi parou ao meu lado. Avaliei rapidamente o rosto do motorista. Não era bonito, não era feio, mas, bom sinal, não disparou em mim nenhum alarme paranóico de grande porte. Adentrei no automóvel, pela porta traseira, e solicitei gentilmente, como é do meu feitio: - Você me leva ali na General Polidoro, coladinho na rua da Passagem, por favor?
O taxista, num sorriso que ora parecia afável, ora parecia ameaçador, sibilou: - Tudo bem, doutor!!! (e sempre tremo quando me chamam de doutor; acho que quando alguém me chama de doutor, e não sei por que diabos sempre me chamam de doutor, esse alguém que me chama de doutor vai, na cena seguinte, me apunhalar no baixo ventre, ou disparar todas as balas do revólver que carrega no coldre na minha cara).
Mas, ainda bem, depois desse ´tudo bem, doutor´, o taxista não me apunhalou, nem me disparou tiros na cara. Apenas comentou displicentemente: - Pois é, doutor, vamos pegar um engarrafamento dos diabos. Nesse momento está sendo enterrado no Cemitério São João Batista um marechal do exército que morreu aos 108 anos, e o cara é gente grande, um figurão, o senhor sabe como é que é, né? E o trânsito está um nó só naquela região.
Fazer o quê em situações assim? Nada a fazer a não ser continuar respirando, e eu continuei respirando, e eu assinalei: - Tudo bem, vamos nessa!
Fomos nessa. O trânsito fluiu razoavelmente até o final da Rua Figueiredo Magalhães, e  cruzamos na boa o Túnel Velho (que liga os bairros de Copacabana e Botafogo), mas quando chegamos na altura do cemitério de São João Batista, estava tudo parado: era o próprio inferno na terra; sol de esturricar; calor de 40 graus; dezenas de automóveis que não saíam do lugar; buzinas disparadas vindas de todas as direções; tanques do exército a estibordo e a boreste (o falecido pertencera a altas patentes do exército nacional). Horror! Horror! Horror!
Foi então que, nada a fazer, resolvi puxar assunto com o taxista para ver se o tempo passava mais rapidamente, e se o trânsito fluía menos vagarosamente. Não fui criativo, admito, na minha abordagem. Indaguei-o: - Você, com tanto tempo trabalhando como taxista no Rio de Janeiro, já foi assaltado muitas vezes?
A resposta do taxista à minha arguição pra lá de óbvia não foi nada óbvia: - Que nada, doutor. Em 12 anos trabalhando como taxista aqui no Rio de Janeiro, eu nunca fui assaltado. Nunca!
Tema de conversa sugerido aparentemente morto, fechei-me em copas;  e olhei, através das grades de ferro que ladeavam a rua, as centenas de sepulturas, mausoléus e coroas de flores do Cemitério de São João Batista. Quando já ameaçava me afundar em caraminholas sobre o sentido da vida (e da morte), fui despertado pela gargalhada do taxista, que bradava: - Que eu nunca fui assaltado, é verdade. Mas o doutor precisa saber a quantidade de vezes que eu fui vomitado. Ou seja: o doutor sequer poderá imaginar o número de vezes que passageiros vomitaram no meu carro. (E rindo às bandeiras despregadas) Eu devo ser o dono, doutor, do carro mais vomitado de todo o Rio de Janeiro!
Acordei num átimo do transe ontológico no qual estava prestes a mergulhar, e arguí: - Como assim, as pessoas vomitam no seu carro?
O taxista: - Já perdi a conta. Até já deixei de contar. Mas é impressionante. Pelo menos uma vez por mês, às vezes duas, alguém entra no meu táxi e...
O cronista (repetindo-se): - Como assim...?
O taxista:  - ... Eles vomitam, doutor, vomitam. Algumas vezes são mulheres grávidas que transporto e, de repente, assim no meio da viagem, elas começam a vomitar no banco traseiro, ou até mesmo no meu colo quando se sentam no banco da frente...
O cronista: - ????
O taxista: - Quando vomitam no meu colo, ou no meu pescoço, tenho de parar o serviço e ir para casa, no Rio Comprido, para me lavar porque eu e o táxi ficamos com um cheiro insuportável...
O cronista: -  E, além das grávidas, quem mais vomita no seu táxi?
O taxista: - Muita gente, doutor, muita gente. Trabalho muito à noite e às vezes carrego pessoas recém-saídas de bares, casas noturnas e de restaurantes, geralmente bêbadas. E aí não dá outra: vomitam tudo que beberam no meu táxi...
O cronista: - Mas isso é extraordinário. Pergunto por assaltos a taxistas e você me vem com, digamos, vômitos a taxistas...
O taxista (interrompendo-me): - ... E não é só grávida e bêbado, não. Um dia peguei um passageiro na Avenida Rio Branco, bem apessoado, todo enfatiotado, de paletó e gravata, muito elegante mesmo. Disse que morava em Brasília, e pensei que pudesse ser deputado, senador, ou até mesmo algum ministro. Não parecia bêbado, muito menos grávido, mas, logo depois de iniciada a corrida, ele, que estava sentado logo atrás de mim no banco traseiro, vomitou no meu pescoço, doutor! Foi uma coisa horrível, doutor, horrível!!
O cronista (Cada vez mais arrebatado pelo inusitado na narrativa): – Ele vomitou assim, do nada?
O taxista: - Do nada, doutor. Ele mesmo estranhou. Disse, até meio envergonhado, que não sabia por que tinha vomitado; que não estava doente, nem nada. Falou que, de repente, uma vontade imensa de vomitar o invadiu, e ele vomitou. Simples assim.
O cronista: - E daí?
O taxista: - Ele pediu mil desculpas. Pediu que o levasse ao Hotel Novo Mundo, onde estava hospedado, pois agora precisava urgentemente tomar banho e mudar de roupa, pois estava exatamente indo à uma reunião importante. Quando chegamos lá, ele tirou 200 reais da carteira, me pediu mais desculpas, e eu fui ao posto mais próximo me lavar, e lavar o carro que fedia a merda, sabe doutor?, parece que o cara tinha vomitado merda, doutor...
O cronista -  (Agindo jornalisticamente, louco por números) – Você tem idéia, Agenor (assim se chamava o taxista), de quantas pessoas já vomitaram no seu táxi?
O taxista:  – Ah, doutor, difícil saber. Mas, com certeza, mais de vinte. Talvez trinta. Talvez quarenta. Não tem pra ninguém: sou, com certeza, o taxista mais vomitado do Rio de Janeiro.
O cronista:  – Não duvido... E acho isso uma coisa impressionante, Agenor! Um dia ainda vou escrever sobre isso...
O taxista:  - O doutor é jornalista?
Quando ia responder à pergunta, olhei para o lado e percebi o mesmo carro vermelho e a mesma motorista maquiada com batom vermelho de vinte minutos antes, a mesma paisagem ao fundo coalhada de sepulturas e mausoléus. Então, intempestivamente (antes que vomitasse no carro de Agenor?), resolvi fazer o caminho até em casa a pé.
Olhei para o taxímetro (paguei o dobro da quantia devida), disse ao taxista que desceria ali, que aquele trânsito estava me deixando com enjôos, e desci do carro. Da janela do carona, desejei boa sorte a Agenor, e lhe disse, em tom brincalhão: - Acho que não devo desejar que Deus que lhe proteja dos assaltos, e sim que Deus lhe proteja dos vômitos. E é o que lhe desejo: Que Deus lhe proteja dos vômitos!
O taxista: - Amém, doutor, amém.
(Segui a pé para casa, pensando no estranho destino do taxista Agenor: o de ser vomitado pelos passageiros que transporta. Mas, de imediato, veio-me pensamento consolador: talvez fosse ligeiramente melhor ser vomitado pelos passageiros do que assassinado pelos passageiros. Cada um com sua sina).




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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O OVO SEMPRE APUNHALADO (OU AGILIDADE NO ABANO ANTES QUE O FOGO SE APAGUE)



A pergunta era feita por minha mãe, dona Águida, à beira do fogão a lenha, aos quatro filhos (eu, Zé Crispim, Cecé e Luiza) que. em varanda de casarão que caía aos pedaços, se sentavam para tomar o café de todas as manhãs em meados dos anos 1960, nos baixos grotões do interior da Bahia (ou seja, lá pelo cu do mundo): - Querem hoje  o ovo com a gema dura ou mole?

Meu irmão e minhas duas irmãs variavam as respostas – e nunca soube o porquê de ontem desejarem gemas moles, e hoje,  gemas duras (e vice-versa). Eu, no entanto, invariavelmente, chovesse canivete ou fizesse sol de rachar cachola,  sabia sempre o que queria, e dizia, cheio de convicção: - Mole, minha mãe, mole.

Mole, e nem precisava dizer, a minha mãe sabia desse meu capricho (e o respeitava), a gema não podia ser quebrada, sequer rachada. Tinha de chegar à mesa, intocada, imaculada, cheia como lua cheia e naquele inolvidável tom forte de amarelo que a marcava. Cercava-a rija clara branca, eventualmente riscada-chamuscada em vários pontos por veias douradas provocadas pela fritura na manteiga quente.

Essa cobiçada gema-lua-cheia-amarelo-forte só poderia ser desmanchada por mim e a desmanchava com prazer: nela mergulhava chumaço de miolo de pão, que, devidamente empapado com aquela gosma sublime, era em seguida depositado na minha boca que, àquela altura do café da manhã, já salivava caudalosamente, amazonicamente, num prazer (quase) sexual.

Esse ovo-com-gema-mole-frito-por-minha-mãe foi certamente o meu mais remoto objeto de desejo gastronômico, a minha madeleine proustiana - e, como já dizia o sapientíssimo Sigmund Freud, o primeiro objeto de desejo gastronômico (ou não) a gente nunca esquece; e, claro, a gente nunca parará de desejá-lo.

Batata. Não daria outra. Não deu outra. O mundo girou. A Lusitana rodou. A ema gemeu. A minha mãe morreu. A Bahia virou remotíssima batucada. Tornei-me homem absolutamente móvel que parece nunca querer se fixar em porto (seguro, ou não) algum, seja cidade, pessoa, idéia, ou signo astrológico. Mas a paixão pelo ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga permanece incólume, e, se depender de mim, perdurará até o fim dos (meus) tempos.

Claro, os ovos fritos que eventualmente devoro hoje em dia não têm esse capricho materno – longe disso. Na correria desses tempos velozes, no calor da hora, às vezes obrigo-me a ignorar a gema que se partiu assim  que tocou (e pipocou) o fundo negro e quente da frigideira que, em escandalosa propaganda enganosa, as bocas de Matilde alardeiam ser antiaderente, mas que de antiaderente não tem porra nenhuma. Ato contínuo: acabo perdendo a paciência e, heresia das heresias, misturo gema e clara, clara e gema, numa massaroca só, em colheradas vigorosas, e engulo aquela praga-do-café-da-manhã-de-todos-os-hotéis-baratos-do-ocidente: os indefectíveis ovos mexidos.

Verdade que profetas-lobistas diversos e perversos, das mais diversas correntes médico-gastronômicas, pipocam aqui, ali, acolá e alhures, todos ávidos em disparar vaticínios funestos que favoreçam menos à saúde pública, e mais às empresas que lhes pagam vultosos salários. Todos, enfim, mancomunados,  absolutamente determinados a interromper esse interregno-gastronômico-amoroso entre mim e o ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. 

Uns advertem: ‘Cuidado, a gema (justo a amada e idolatrada gema?) aumenta o colesterol e entope as artérias e provoca infartos fulminantes.’ 

Outros acusam: ‘Suas calças não vão lhe caber mais se continuar comendo ovos fritos!’

(Não conseguirão me separar do ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. Fomos feitos um para o outro. Romeu & Julieta. Batman & Robin. Doris & Day. Brad & Pitt. Abra & Cadabra. Caio-Fernando & Abreu ).

Diante dessa algaravia macabra de alertas alarmistas, finjo-me de morto. Homem (quase) velho, não posso, nem devo, ouvir  esses tocadores de trombetas do apocalipse que assopram tragédias – embora esses tocadores de trombetas do apocalipse se reproduzam e se espalhem com a velocidade dos raios e dos tsunamis. (Adoram listar alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos garantirão o paraíso. Adoram também listar, alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos farão sucumbir no fogo do inferno no próximo segundo).

Os itens dessas listas podem, a depender da força das marés e, principalmente, dos vorazes marqueteiros de milionários e gulosos  grupos alimentícios internacionais,  podem se intercambiar num piscar d’olhos.  O ovo, por exemplo, é redimido em rede nacional de tevê de vez em quando. O ovo, por exemplo, é  execrado (principalmente a minha adorável gema mole, agora acusada de hospedar salmonelas homicidas) em rede nacional de tevê de quando em vez.

O ser humano adora brincar de controlar o incontrolável. Não será exatamente ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga a mais ou a menos que adiará o inadiável. O que tiver de ser será, whatever will be, will be, com ou sem o adorável  ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga.

Carpe diem. Ou como cantava Santa Clementina de Jesus:: ´Agilidade no abano antes que o fogo se apague´. (E todos nós sabemos: com ou sem ovo frito na manteiga, todo o fogo se apagará um dia, e tudo virará eterna noite sem lua-cor-de-gema-de-ovo-frito-na-manteiga).

PS: Evoé, Caio Fernando Abreu, primeiro e único,  que teria completado  63 anos em 12 de setembro, e continua por aqui, no meio de nós, morto e forte..








quinta-feira, 8 de setembro de 2011

TRÊS PIADAS VAGINAIS INFAMES (OU PENSAR SOBRE O SENTIDO DA VIDA FAZ MAL À SAÚDE)

CBH falou & disse (em Roda Viva): tem dias que a gente se sente/como quem partiu/ ou morreu. Hoje eu sou esse verso buarquiano até a medula. Amanhã Beltrano poderá ser esse verso buarquiano até a medula. Depois de amanhã Sicrano poderá ser esse verso buarquiano até a medula. (A náusea nasceu pra todos). Mas nada grave, querido leitor. Nada agudo, caro leitor. Assim é a vida, pontuada por traições shakespearianas, silêncios cruéis, memórias demolidoras, frases letais disparadas a tacape, peripécias dramáticas e patéticas, e, basicamente, não enxergar sentido algum em continuar respirando.

A escolha é hamletiana, e perene: viver ou não viver; morrer ou não morrer.

Hoje, mais uma vez, escolho viver. Provavelmente amanhã e depois de amanhã também; a vida é bela mesmo quando é feia, autocitando-me. Mas tentemos que seja assim: viver sem nos levarmos muito a sério; sem acharmos que, em algum momento, seremos o rei-rainha da cocada-preta; sem duvidarmos que somos pó, e apenas pó, e ao pó voltaremos; com a consciência plena de que nos conhecemos muito pouco, e de que não conhecemos absolutamente nada do que se passa na cabeça de outrem; sem nos desesperarmos com o fato de a vida não ser o teclado do computador onde escrevo este texto, no qual sempre poderemos trocar o L pelo S, quando percebemos que escrevemos a letra errada. Ou, se quisermos, à la Deus, deletar tudo.

Dito isso, mudemos de assunto rapidamente, antes que o fel se transforme em úlcera ou câncer - e vamos às piadas vaginais infames que lhe prometi, caro leitor, no título desta (não)crônica, e que, espero contritamente, ajudem a zerar o meu, o seu e os nossos cérebros (ou o que ainda restar deles).

1. Idos dos anos 1960. Tito Lívio, 35, dentista, e Márcia Regina, 26, do lar, casaram-se com pompa e circunstância na Igreja do Outeiro da Glória.
Conheceram-se no Cine Paissandu, na rua homônima.
Ambos adoravam cinema.
Nove meses depois, nasceu garota pequerrucha e saudável. Instalou-se então certa celeuma sobre qual seria o nome da criança.
Tito, louco por Ava Gardner, queria chamá-la Ava.
Marcia, soutien de millus 40, louca para ter os seios fartos de Gina Lollobrigida, preferia Gina.
Depois de muita negociação, adotou-se solução ecumênica:
Tito e Márcia homenageariam as duas atrizes famosas e queridas ao mesmo tempo.
Como seria o nome da filha?  Avagina.

2. Era uma vez - num tempo longínquo, talvez anos 1950, em que papais e mamães ainda não tinham percebido que seus petizes  já sabiam as diferenças entre um pênis e um abacate, ou entre uma vagina e uma couve-flor - uma mãe zelosa e virtuosa que foi tomar banho, e esqueceu a porta aberta.
O peralta Pedrinho, 8 anos, rápido no gatilho, não perdeu a oportunidade de ver a mãe nua (ou melhor, não perderia a oportunidade de ver qualquer mulher nua in natura).
Dona Lindaura, chocada com a súbita entrada em cena do filho, não teve tempo nem de pegar a toalha para cobrir-lhes, digamos, as vergonhas.
Pedrinho, só de sacanagem, perguntou, com a cara mais inocente do mundo: - Mainha, o que é isso que a senhora tem no meio das pernas? 
A mãe, com a cara mais deslavada do mundo, envergonhadíssima, saiu-se com essa: - Foi decorrência de um um acidente de carro que sofri quando garota. É um talho!
Pedrinho, rápido no gatilho: - Mas que azar, mainha...  logo bem em cima da buceta!!!

3. Teodoro Scott, 32, era o predador sexual em pessoa.
Comia, diziam as más línguas, tudo que usasse saias e tivesse um buraco no meio. ´Inclusive padres, inclusive freiras´ - sibilava, salivando de prazer, dona Ricarda, para o resto da matilha de beatas que frequentavam a igreja de Nazaré, em Salvador, nos idos dos anos 1960.
Mas até teodoros-scotts têm dias de (pouco) pão e (pouca) água. Enfatiotado com o melhor terno e perfumado por todas as seivas aromáticas disponíveis na Magazine Sloper da Rua Chile, adentrou, garbosamente, a festa de 15 anos de Marianita Tupinambá, no Clube Baiano de Tênis.
A festa foi um estouro.
Menos para Teodoro Scott: às 4h15, já encharcado por hectolitros de álcool, não conseguira pegar ninguém. Absolutamente ninguém.
Desesperado, ia e voltava pelo salão, olhos varados disparados para todas as direções - e nada.
Enfim, chegara a hora da xepa: o momento do baile em que os que não pegaram ninguém pegam o que estiver ao alcance da mão: seja lá que tribufu for.
Foi quando Teodoro Scott avistou Vera Regilda Tamandaré, unanimemente considerada a mulher mais feia da Barra Avenida e, quiçá, do hemisfério sul. Também conhecida como Miss Maxixe, zarolhava, mancava, tinha cabelhos oxigenados à Marilyn Monroe; era, aos 40 e poucos anos, virgem incruadíssima, com louvor.
Abarrotado de álcool até a tampa, e com o orgulho de macho ferido, Teodoro Scott partiu em direção a Vera Regilda Tamandaré como se Vera Regilda Tamandaré fosse milagrosa simbiose de Elizabeth Taylor & Rita Hayworth & Lana Turner.
Cercou-a, emparedou-a, prendeu-a num forte abraço, enfiou-lhe a língua sôfrega até o esôfago, e silabou, melhor, ciciou: - Bo-ni-ta, bo-ni-ta!
Vera Regilda Tamandaré, encabulada, sem ter certeza absoluta de que era ela, a virgem incruada, que estava sendo assediada por aquele adônis, gaguejou: - O. ooooo sssseeeenhoooorrr táaá falando commmmmigooo? 
Teodoro Scott, varado pela cachaça e pela luxúria e pelo pênis que lhe ardia dentro das calças, sussurrou-lhe: - É com você mesmo, meu broto, que estou falando, minha deusa, minha flor de maracujá!
E deu a estocada final: - Você é a mulher mais bonita desta festa. Minto. Você é a mulher mais bonita do planeta!
E arrematou, celerado pelo álcool e pelo desejado: - Você é bonita. Bonita! Bê-U-Cê-Ê-Tê-A! Bu-ni-ta!

Pano rápido.

(E o fel se foi. Mas ele sempre volta)

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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ALMAS EM CONFLITO À BEIRA DA BAÍA DE GUANABARA (OU QUANDO SETEMBRO VIER)

O nome do filme é Quando Setembro Vier (comédia romântica dos anos 1960 estrelada por Rock Hudson e Gina Lollobrigida, na qual, como em todas as comédias românticas, ao contrário da vida real, tudo acaba bem; e, por esse motivo, o apreciava, e o aprecio, sem moderação).
Desde então, a chegada de setembro sempre me traz certa esperança de que a vida desfaça e dissolva todos os nós que nos atam, e se desate para todo o sempre, lépida e fagueira e primaveril – e, ainda bem, setembro sempre vem – e setembro sempre me faz crer que alegrias inauditas surgir-me-ão do nada e que possamos ser felizes para todo o sempre, ampla, geral e irrestritamente.
Setembro acabou de chegar, e não pude deixar de evitar: todos esses sentimentos de bem-aventurança me arrebataram na minha diuturna caminhada matinal de hoje de manhã pelo Aterro do Flamengo.  O veranico de inverno que fez com que ontem a temperatura chegasse a 38 graus no Rio de Janeiro deu lugar a manhã cálida, cinzenta e fria, na dose certa: 17-18 graus. Caminhava como se farfalhasse sobre nuvens alvíssimas e enxergasse a estupidamente bela boca banguela da baía de Guanabara lá do alto, como se fosse céu no chão.
O cardápio de sempre, trivial, mas, para mim, fundamental: 1. árvores frondosas; 2. bebês acompanhados de babás;  3. babás acompanhando bebês; 4. paramédicos puxando lentamente anciãos doentes pelo braço; 5. velhotes que caminham a toda velocidade, como se estivessem (e, de fato, estão) correndo da própria morte; 6.  vendedores de água de coco e de biscoitos Globo; 7.  gatos e a cachorros, já velhos conhecidos; 8. ladrões, de bicicletas, que lá estão diuturnamente, de olho nas correntinhas de ouro dos pescoços alheios; 9.  maritacas operosas sempre risonhas e francas.. Enfim, caro leitor: sentia-me tal e qual virginal garota de íntegro cabaço, mix de Doris Day e Julie Andrews, a flanar ao som de ´ela é carioca... ela é carioca...´
Imerso nesse clima que mixava Walt Disney & Tom & Vinicius, absorto, contrito, ensimesmado, quase me autocelebrando, demorei a perceber  que, poucos metros à minha frente, dois homens discutiam, e discutiam acirradamente. Só acordei dessa setembrina good trip quando altissonante CARALHO!, proferido em altíssimo e bom som chegou até os meus ouvidos e quase me rompeu os tímpanos.
Obrigo-me então a deletar, temporariamente, as Julies Andrews e os Tons Jobins que me arrebatavam, e presto atenção nos dois homens que, nas minhas fuças, pugnam-se verbalmente como se daquela discussão dependesse o destino de toda a espécie humana: o mais alto e mais jovem (talvez 45 anos) era branco; o mais baixo e mais velho (talvez 57 anos) era negro. Ambos bonitos, e ambos garbosos. Mas ambos (pareceu-me) imersos nos próprios fantasmas e tragédias. Mas ambos consumidos e devorados totalmente pelo pathos do desastre de rompimento iminente e, quiçá, irreversível.
(Olhos e ouvidos atentos, e a cabeça no lugar, passo levemente desacelerado, posso então ouvir flashes  do que conversam).
Homem A (negro, mais velho, talvez 55 anos): - Você sabe que merda de cara é esse com quem  você está se envolvendo? Sabe ao menos se ele é, por exemplo, soropositivo? Nada contra soropositivos, mas você precisa ter essa informação, precisa saber o terreno em que está pisando....
Homem B (branco, mais jovem, talvez 45 anos; interrompendo bruscamente o fluxo do pensamento do outro): - Soropositivo? Você está querendo dizer que F. pode ser soropositivo? Você está é morrendo de ciúme porque estou me envolvendo com outro cara! Você é um recalcado! É isso! E isso é típico de ex-namorado que não quer o ex-namorado seja feliz com outro cara. E quer saber: quem teve e tem amigo soropositivo é você! Quem teve amigo que morreu de Aids foi você! Eu não tenho, nem nunca tive, nem nunca terei amigo soropositivo; nem nunca tive amigo que morreu de Aids. Quem sempre se misturou com gente  soropositiva foi você, não eu!!!!
O homem A, impactado pela delírio demencial do homem B que acabara de ouvir, diminui o passo, e quase se afunda no asfalto. O homem B, não, vai em frente. Mas, de repente, estaca, se volta para o homem A, e urra, em altíssimos decibéis: - Anda mais rápido, porra. Depois que você ficou velho está ficando lerdo, é?
Ouço a conversa apenas até esse momento. Temo que possa fazer alguma merda. Dou meia volta. Mudo completamente o foco. Concentro-me no som dos pássaros e do mar que bate ali perto. Extasio-me com as maritacas que maritacam ao meu redor – e volto a imergir no clima à Disney-Tom-Vinícius de antes de sintonizar aquela cena constrangedora.
Novamente flano sobre o Aterro do Flamengo ao som de Tom & Vinicius, mas não posso deixar de lembrar que, tal e qual o homem A, eu tivera, e tenho, amigos soropositivos, alguns mortos antes que os remédios que lhes poderiam salvar a vida surgissem; outros, thanks god, estão vivos e fortes, lépidos e fagueiros, vivendo vidas às vezes alegres, às vezes tristes, tal e qual qualquer um de nós, pagando pra ver, indo à luta, valentemente, sem pejo, sem rancores, sem ressentimentos, sem exasperações.
Lembro então de J.H., querido e amado amigo de infância e adolescência em Jequié-Bahia que perdi de vista por muito tempo, e só o reencontrei, coisas da vida, já abatido e esquálido, num ônibus cheio que subia a Avenida Angélica, em São Paulo, no final dos anos 1980. Só nos vimos, quando ele já estava quase descendo em ponto próximo à Praça Buenos Aires. Olhou-me. Olhei-o. Reconhecemo-nos imediatamente. Abraçamo-nos. Ele me disse: - Não estou bem. Mas não foi à toa eu ter te encontrado por acaso no meio do nada dentro de um ônibus nesta cidade gigantesca que é São Paulo.
Separamo-nos. Reparei que J.H. andava com dificuldade e tinha grandes manchas vermelhas nos braços. Foi a última vez que o vi.
Lembro também, e lembro com alegria, de H. e N.: ambos soropositivos, ambos vivos, ambos fortes, ambos operantes, ambos de bem com a vida, sem raivas, sem ressentimentos, sem exasperações.
H.. trocou o Posto 6 por Búzios; é bonito para caralho; bem casado; sempre animadíssimo; apaixonado pelo Flamengo; doido por carnaval; apaixonado pela vida.        
N. trocou São Paulo por Porto Alegre; é o cara mais zen que conheço; sempre de bem com a vida, inda que a vida lhe seja eventualmente caprichosa; apaixonado pelo Internacional; não se queixa de nada; conforta a quem se desespera; namora; viaja; adora o Rio de Janeiro; e agora em outubro bate asas para Paris, onde fica até o dinheiro acabar.
H. e N. estão certíssimos: a vida não é boa; a vida não é má; a vida é; ponto; e estamos conversados.
(Bem, quanto ao homem B, o que, talvez num momento de raiva, se vangloriou de nunca ter tido amigos que morreram de Aids, ou amigos que sejam soropositivos, não lhe sinto raiva nenhuma. Reservo-lhe o mais nobre dos sentimentos humanos: a compaixão).
(E o melhor de tudo: setembro chegou; e, bênção dos céus, na programação aleatória do canal Sky de jazz clássico Chet Baker começa a tocar e cantar You´re Driving me Crazy. Acho que vou chorar).