quinta-feira, 30 de junho de 2011

O DIA EM QUE PAULO RODOLFO NEGOU TRÊS VEZES, E VIROU PAULETE ISCARIOTES

Devia ser 1991 (ou 1992; há controvérsias): o grito ecoou fundo no meio da noite quente de abril no bairro de Amaralina, em Salvador: - Socorro! Socorro!

Paulo Rodolfo, profundos e insondáveis olhos azuis, eternamente bem-humorado, daqueles que garantem a alegria e o esplendor de qualquer mesa de bar mesmo que o sol já comece timidamente a despontar no horizonte, acordou aos berros no meio da noite. Urrava, esbaforido, e atordoado, como se lhe acabassem de estripar o fígado, os rins, e a bexiga e os jogassem num cadeirão de água fervente, misturada com soda cáustica - e, de fato, sonhara que lhe estripavam o fígado, os rins, e a bexiga, e os jogavam num caldeirão de água fervente, misturada com soda cáustica.

O grito de socorro foi tão estridente que acordou as cadelinhas poodle Sara e Madalena, suas diuturnas companheiras na cama king size do pequeno, mas razoavelmente confortável, apartamento onde moravam, a poucos metros da praia de Amaralina.

Sara e Madalena o olharam preocupadas e assustadas, mas Paulo Rodolfo, ainda atordoado com o sonho aziago, não se dignou a afagar-lhes as orelhas e os cocurutos, como sempre o fazia em momentos de pânico, ou de não pânico. Preferiu ensimesmar-se, afundar a cabeça no travesseiro, e tentar dormir de novo. Não conseguiu (as cadelinhas poodle, no entanto, passado o susto, mergulharam novamente em sono profundo).

Paulo Rodolfo voltou a lembrar esse pesadelo algumas horas depois, quando, a bordo de rosto macilento e de olheiras abissais, adentrava o estúdio de tevê, onde participaria de programa popularesco e sensacionalista (A Bahia em Transe). Líder de audiência no horário, era comandado pelo temido e poderoso Teodoro Barrela, famoso pela verborréia inflamada que disparava contra as diatribes e ocorrências do cotidiano, e fervoroso seguidor da Igreja Universal do Reino de Deus.

No começo, Paulo Rodolfo temera participar de programa com perfil tão sensacionalista, e comandado por evangélico de assumido viés moralista, mas o produtor da peça que então dirigia (Assim é Se Lhe Parece,  de Luigi Pirandello, adaptada para a paisagem do Pelourinho) insistiu, pragmaticamente: - Se você quiser ter vida melhor e sair daquele apartamento de merda de Amaralina, você terá de abrir concessões, de fazer com que o povo consuma o biscoito fino que você produz! 

A declaração de inspirações vagamente oswaldianas procedia, mas Paulo Rodolfo não conseguia se convencer totalmente dos argumentos do produtor (e namorado). Mas finalmente cedeu: e mesmo depois daquele pesadelo medonho no qual se estripava macabramente, estava lá na hora marcada, seis e meia da manhã, para participar do programa  sensacionalista-popularesco, e, claro, tentar fazer com que o povo consumisse o biscoito fino que produzia.

Às sete em ponto, o produtor do programa (sujeito do qual não gostava muito; ´meu santo não bate com o dele´, dizia), o avisou:
- Entra já no estúdio. Você é o próximo entrevistado! E complementou, em tom que pareceu a Paulo Rodolfo mais ameaçador do que promissor: - Essa sua entrevista vai marcar época na Bahia!

Cego pelas luzes dos refletores, Paulo Rodolfo entrou em cena; sentou-se em poltrona  em tons de vermelho, azul e branco, e avistou,  próximo dele, rindo com todos os dentes a que tinha direito, o paquidérmico, o rotundo, o superobeso Teodoro Barrela, que, imediatamente esbravejou: - Câmera nos olhos dele!

Foi quando Paulo Rodolfo, ao ver o câmera se aproximando dele gulosamente, teve a nítida impressão de que o pesadelo da noite anterior se materializaria ali e agora.  Não deu outra: Teodoro Barrela, em tom ameaçador e frenético, perguntou-lhe à queima-roupa: - A família baiana quer saber, Paulo Rodolfo, você é gay?

Paulo Rodolfo, sentindo que alguém de fato o estripava e lhe arrancava boca afora o fígado, os rins e a bexiga, suou frio, e titubeou, e gaguejou: - Des...culpe, Bar...rela. Não entendi a pergunta.

(Deslavadíssima mentira, ele entendera muito bem a pergunta, mas  precisava de algum tempo, nem que fosse mísero microssegundo, para tentar pensar em alguma coisa que o livrasse daquela porra; viera ali divulgar ´a merda do espetáculo que dirigia, caralho, e não, puta que pariu, para falar da vida sexual de ninguém, muito menos da minha´).

Teodoro Barrela não se fez de rogado, e soletrou cada sílaba da pergunta que voltava a fazer: - A família baiana quer sa-ber, Paulo Rodolfo, vo-cê é gay, vo-cê é bai-to-la, você é pe-ro-bo, você mi-ja fo-ra da ba-cia?

Paulo Rodolfo, ávido por faca amolada que lhe cortasse os pulsos, e  que o impedisse de protagonizar aquele vexame, sem saída,  acuado, balbuciou, de maneira quase inaudível: - N.... nã...Não.. n....ão sou!

Teodoro Barrela pulou-lhe gulosamente na jugular, de onde não sairia até o final da entrevista, e vociferou: - Agora quem  não entendeu a sua resposta fui eu. Por isso, pergunto-lhe pela segunda vez:  você é gay, Paulo Rodolfo?

Paulo Rodolfo, mais perdido que cego em tiroteio, agora queria faca amolada não mais para cortar-lhe os pulsos, mas para estripar todas as vísceras daquele obeso filho da puta e jogar todas as vísceras desse obseo filho da puta num rio superlotado de piranhas famélicas. Mas não. Novamente fez das tripas coração, e balbuciou de forma ainda chocha, ainda fora do tom perempetório  que Teodoro Barrela gostaria que a resposta tivesse: - Não, não.... (tempo)  sou....

Teodoro Barrela, inclemente, grudando-lhe gulosamente na jugular, refez a pergunta, e a refez de maneira ainda mais contundente: - Não entendi. Câmera nos olhos dele! Você é ou não é gay? É o que a família baiana quer saber, Paulo Rodolfo. Responda, por favor!!! Você é ou não é viado?

Paulo Rodolfo percebeu-se totalmente sem saída. Lembrou-se que ligara no dia anterior para toda a família que morava em  Feira de Santana, e avisara sobre a aparição na tevê. Imaginou, em pânico, a mãe, amantíssima, mas homofóbica até a medula, não suportando aquele rude golpe, aquela brutal revelação em rede estadual de tevê, e se deixando abater por súbito fulminante colapso cardíaco, e quase chorou.

Paulo Rodolfo então se muniu de inesperado e surpreendente pathos, digamos, super-heterossexual, misto de John Wayne e Jack Palance, levantou da poltrona multicor, avançou em direção à pequena plateia de convidados (sim, diariamente, a produção do programa arrembanhava moradores de rua das imediações, dava-lhes banho + café-com-leite-e-pão-com-manteiga, e os obrigava a sentar nesse pequeno auditório), e bradou, retumbante, diante da câmara nos olhos dele e da pequena platéia que parecia petrificada diante de revelação que poderia mudar-lhes totalmente as vidas: - Não, família baiana, não câmera nos meus olhos, não Teodoro Barrela, não pequena plateia! EU NÃO SOU GAY! EU NÃO SOU GAY! EU NÃO SOU GAY!

A platéia derramou-se em aplausos frenéticos, e se a câmera descesse até a altura do plexo celíaco de Teodoro Barrela poderia ali flagrar rotunda e evidente ereção. Foi então que o apresentador, com olhos transidos, como se acabasse de ter orgasmo (o que talvez de fato tenha ocorrido), mergulhou ainda mais fundo a faca no coração de Paulo Rodolfo:  - Pois é, família baiana, o Paulo Rodolfo, além de não ser gay, segundo informou alguém da minha produção, tem duas belas filhas. Câmera nos olhos dele: como se chamam suas filhas, Paulo Rodolfo?

O diretor teatral Paulo Rodolfo pensou em simular desmaio, mas, antes, imaginou: fora aquele filho da puta do produtor a quem tinha ódio mortal o ´alguém da produção´ que passara essa estapafúrdia e mentirosa informação para Teodoro Barrela. Mas resolveu: não havia jeito de fazer aquela farsa patética recuar, e foi fundo: - É verdade, Paulo Rodolfo. Tenho duas filhas.  Então se lembrou dos duas poodles que amava tanto, que tinha em casa, e disparou: - Elas se chamam Sara e Madalena...

Teodoro Barrela, interrompendo, radiante e jubiloso: - Que sublime, família, baiana, que sublime!!! As filhas de Paulo Rodolfo têm nomes bíblicos, família baiana!

Paulo Rodolfo, completamente atordoado, quase à beira do nocaute fatal, voltou, atabalhodamente a sentar na poltrona azul, vermelho e branco, enquanto ouvia, Teodoro Barrela urrar, e berrar, e vociferar: - Câmera nos meus olhos! Câmera nos meus olhos! Não pense, família família que trouxe o diretor teatral Paulo Rodolfo ao meu programa à toa. Havia intenção clara por trás desse convite. Sabedor, por meio de alguém de minha produção, de que esse importantíssimo artista dos nossos palcos não praticava o nefando pecado da sodomia, eu resolvi trazê-lo aqui para demonstrar o quão absurda é a tese que circula Salvador afora de que todas as pessoas que se envolvem com arte cênica na Bahia. são gays (Quase histérico) O que quero demonstrar, família baiana, é que nem todo mundo que faz teatro na Bahia é gay!!! (Totalmente histérico) O que quis demonstrar com o exemplo edificante de Paulo Rodolfo é....

Epílogos

1. O de Paulo Rodolfo/Paulete Iscariotes: a) o espetáculo Assim é Se Lhe Parece, adaptado para a realidade do Pelourinho, teve temporada curta, graças à pouca presença de público; b) os amigos de mesa de bar passaram a chamá-lo,  jocosamente, de Paulete Iscariotes - ele subia nas tamancas quando isso acontecia, mas depois se acostumou,  a ponto de transformá-lo em nome artístico a partir de meados dos anos 1990); c) morreu no início do século 21 por complicações respiratórias decorrentes da Aids.

2. O das poodles Sara e Madalena:   a) no dia seguinte ao sepultamento de Paulete Iscariotes foram atropeladas por ônibus que descia a toda velocidade a Ladeira da Barra; b) os mais crédulos e mais místicos chegaram a dizer que elas, abatidas com a morte do amo e senhor, se jogaram, por livres e espontâneas vontades, sob as rodas do veículo atropelador.

3. O de Teodoro Barrela: a) depois de fazer esse programa popularesco-sensacionalista por várias temporadas, sempre na liderança da audiência no horário, comprou algumas estações de rádio e tevê no interior da Bahia e se tornou milionário. b) como se não bastasse, se  elegeu deputado federal por três legislaturas. c) teve morte horrível: fez cirurgia para reduzir-lhe as dimensões estomacais, mas nem assim deixou de comer compulsivamente: d) quando almoçava nababescamente em churracaria brasiliense na semana passada, o estômago explodiu-lhe de repente, espalhando vísceras e alimentos recém-ingeridos por todo o local; d) pedaço de.costela de porco que devorara inteira disparou-lhe da barriga como se fosse bólide desgovernado e atingiu o olho de deputada federal paraibana que o acompanhava e, que dizem as boas e más línguas, lhe seria amante. e) o atendimento imediato a impediu de ficar cega.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

RELATO SOBRE GALINHAS, GATOS E HOMENS, DEDICADO A UM CACHORRO CHAMADO MARTIM

Nenhum trauma familiar de grande monta atingiu em cheio a minha infância-querida-que-não-volta-mais. Meu pai, Crispim, gentil-homem cheio de humor, me ensinou a rir das nossas próprias desgraças - e nenhum outro ensinamento me seria mais precioso. Minha mãe, Águida, profunda, reflexiva, lunar, veia artística à flor da pele, dona de sensibilidade abissal a qual me injetou, delicadamente, por meio de seus tépidos seios, nos quais mamei até os quatro anos de idade. Os meus irmãos, Luiza, Cecé e José Crispim, me trataram carinhosamente - a ponto de até hoje serem os meus melhores amigos.

Fora desse ecossistema afetivo que me nutria, o mundo lá fora, mesmo na segunda metade dos anos 1960, não era moleza não, meu irmão. Crianças da mesma idade que eu não me perdoavam o fato de ser: 1) gordo; aos dez anos de idade, pesava 60 quilos; 2) o-melhor-aluno-da-sala; chamavam-me de C-D-A-I (cu-de-aço-inoxidável); 3)  last but not least, o maior perna de pau do sudoeste baiano, e alhures.

Dessa constatação adveio o seguinte fato: escalavam-me invariavelmente na posição de goleiro; e urravam para os meus colegas que, em resposta, urravam, no mesmo tom: - Com o bolo fofo do Rogério no gol nenhuma bola passa. É só ele abrir os braços que fecha a trave! 

Dois desses arquivilões de minha infância nunca me sairiam da memória. Alcunhados por nomes nada lisongeiros - Bosteiro, e Barrão - me perseguiam implacavelmente. Sempre que volto a Jequié-Bahia, onde esses eventos ocorreram - e sempre volto a Jequié-Bahia, cidade à qual consagro imorredouro amor e afeto -, gosto de passar pela rua Silva Jardim. Era nesse, digamos, logradouro que  Barrão, Bosteiro e eu sempre nos cruzávmos. Ao vê-los, à distância, mudava imediatamente de calçada, em vã tentativa de evitar que me vissem, mas os filhos da puta sempre me viam, e sempre berravam: -  Bolo fofo! Bolo de Bosta! Bunda de caruru! (NR: não baianos talvez não saibam:  caruru é gostosíssima iguaria feita à base de quiabo e de camarão, mas com consistência que sempre provoca certo asco nos não iniciados: mix de geleia de kiwi  e merda).

Fundamental ressaltar: além de papai, mamãe e irmãos amorosos, e as leituras fugidias das fotonovelas surrupiadas de minhas irmãs, e das obras completas de Jorge Amado que lia com intensa avidez, descobri amiguinhos mais acolhedores, bem mais acolhedores. Fui precoce nesse lance de perceber que podia me relacionar melhor com alguns bichinhos simpáticos que me cercavam do que com os meus convivas de antanho.

Dona Águida, a minha mãe, além de costureira e bordadeira e cabeleireira, era quituteira de ótima estirpe. A galinha-ao-molho-pardo que fazia era de se comer rezando. Mas a preparação do prato não me deixava muito confortável. Ao contrário de hoje, quando compramos frangos nao identificados e cheios de hormônios nos supermercados, tinha-se então quintal recheado de galinhas de ótima cepa (e em tempos de violência quase zero eram os ladrões de galinhas os grandes criminosos dessa época).

Não podíamos nos apegar a nenhuma dessas simpáticas galinhas. Afinal, a qualquer momento, uma delas (aleatoriamente) poderia ser agarrada e degolada por Dona Águida, que, em seguida a cozinhava, a temperava e a transformava naquela iguaria à qual amávamos tanto. Detalhe: o acepipe era cozido no próprio sangue da ave que depois comeríamos rezando - e rezando sem culpa alguma.

Mas eu, ai de mim, me apeguei a uma dessas galináceas criaturas. Ao ver que minha mãe segurava com uma mão faca afiadíssima, e com a outra, o pescoço de certa galinha a quem tinha me afeiçoado, bradei: - Não, essa não! Essa não, minha mãe! Dona Águida me olhou com ar zombeteiro, mas acabou cedendo aos meus apelos.

Próxima cena: eu e Gorda (assim batizei minha amiga galinácea),  felizes para sempre - ou pelo menos até quando morreu de velha e gordíssima, a ponto de se arrastar pesadamente pelo quintal. Ás vezes, penalizado, carregava-o no colo pelas redondezas (e, merda, ouvia sempre alguém gritando: - Olha lá: um gordo carregando uma gorda!!! Kakakakakakaka!).

Enquanto me relacionava com Gorda, abri, paralelamente, infielmente, dois novos canais de relacionamento, agora com seres felinos. Primeiro veio a gata Brigitte (claro, em homenagem à Brigitte Bardot, o dernier cri do mundo cinematográfico de antanho). Fez jus ao nome. Era gata pra lá de lasciva:  gostava de se esfregar na minha genitália (que, perdão leitores, se petrificava imediatamente), e de, pasme, lamber minhas virilhas suadas.

Mas antes que o leitor mais moralista me aponte o dedo da culpa, e me atire a primeira pedra, e me acuse de zoófilo, devo dizer: nunca chegamos às vias de fato. Ambos permanecemos castos, até ela morrer; e até, algum tempo depois, eu  descobrir em corpos humanos alheios enormes fontes de prazer.

Como se não bastassem Gorda e Brigitte, entrou em cena gato robusto, pelagem cinza-escuro, quase espécie-de-Rodolfo-Valentino-dos-felinos. Chamava-se Poti. Não chegamos a fazer quarteto amoroso heterodoxo. Não por falta de vontade minha. Ou de Brigitte, sempre arrojada, sempre avant la lettre. Quanto à Gorda, manteve-se num mutismo revelador. Talvez temesse: com a entrada em cena de integrante tão garboso, perderia espaço no meu coração e no de Brigitte. Bobinha: nós a amávamos tanto, e a amaríamos tanto, incondicionalmente, com ou sem Potis.

Mas, coisas da vida, trapaças da sorte, o destino não quis, esse quarteto amoroso heterodoxo não se concretizou. Poti, destemido, viril, atolado de libido até a tampa, ronronava ao redor de nós durante o dia, mas, na calada da noite, aventurava-se Jequié-Bahia afora - e só voltava altas madrugadas. Um dia, não voltou.

Registramos, enlutados, o sumiço do quarto vértice desse eventual quarteto amoroso, e lamentamos tal perda a ponto de chorarmos copiosamente. Mas,após alguns dias, concluímos, estoicamente: ele teria preferirdo seguir outros rumos e singrar outros mares. Antes, tivesse. Uma semana depois, insuportável cheiro de algo que se apodrecia no quintal invadiu a nossa casa e os nossos narizes. Logo descobrimos: era o corpo de Poti que se decompunha no fundo do grande tanque de água que havia no quintal.

Depois dessa infância rica de amizades animais, mergulhei (temerariamente, mas necessariamente) fundo nos jogos afetivo-amorosos-entre-humanos em vigor desde que o mundo é mundo. Claro, quebrei muitas vezes a cara; apaixonei-me ene vezes por pessoas erradas; afundei-me aqui e ali no lodo movediço da paixão - enfim, caí de boca no pântano fascinante, mas eventualmente traiçoeiro, do sexo, do amor e da (por que não?) luxúria.

Até que, em 2001, o mundo girou, a lusitana rodou: inesperadamete entrou em cena o gato vira-lata Ravic, nascido na Vila Planalto, em Brasília, e que me fora presenteado por um casal de amigos. Entrou e arrebentou.

Tornamo-nos unha e carne. Ceci & Peri. Batman & Robin. Bonnie & Clyde. Rock & Hudson. Marilyn & Monroe. Dilma & Rouseff. Ravic surgiu-me naquele exato momento das nossa vidas em que mais que parece que tudo na vida está dando errado; de fato, efetivamente, contundentemente, inexoravelmente, tudo na nossa vida está dando errado e afundando na mais inexorável merda. Juntos, mudamos da Asa Norte para a Asa Sul,; da Asa Sul para a Asa Norte, em Brasília; acampamos em casa de amigos; mudamos para o Rio de Janeiro; voltamos de novo para Brasília.

Eu aguentei o tranco, entre mortos e feridos, firme e forte. Ele, não: foi devorado por câncer fulminante que o transformou num farrapo felino que se arrastava pelo chão dos apartamentos onde moramos, e que urrava de dor, e que vomitava jatos caudalosas doses de sangue a cada meia-hora. Mas morreu em paz - já agonizante, coloquei-o numa espécie de moisés e o levava para o lugar da casa que fosse. Certa noite, coloquei-o à beira de minha cama, e ele me olhou com tal transcendência, que, inferi certeiramente, presumo: devia saber que morreria a qualquer momento.

Adormeci olhando-lhe nos olhos; e ele nos meus. Dia seguinte, ao acordar, deparei com os olhos dele ainda abertos, congelados na minha direção - mas já havia morrido de madrugada. (Talvez, a ver, muitas pedras ainda rolarão, Ravic tenha sido o ´homem´ da minha vida´. A ponto de tê-lo tornado protagonista de romance escritor em 2007 e publicado em 2009: Um Náufrago que Ri, Editora Record, à venda nas boas casas do ramo, ou pela internet).

Senti-me visceralmente viúvo. Não quis mais me unir a felino algum. Fora relação tão retumbante que evitei, e evito, amar outro gato. Mas a vida nunca é exatamente o que a gente acha que deve ser. A vida é, simplesmente.

Nos últimos dias, aloprado deus-ex-machina me colocou diante da seguinte equação: a) uma de minhas queridas sobrinhas pariu gêmeas prematuras - e que passam muito bem, obrigado, e estão vivazes e fortes; b) o pediatra que cuida dessas garotas recém-chegadas ao planeta Terra, em UTI neonatal de hospital do Rio de Janeiro, foi claro: ao voltarem para casa, minhas queridas-sobrinhas-netas deverão viver em ambiente asséptico, no qual será terminantemente proibida a presença de animais domésticos.

Detalhe: os pais das minhas sobrinhas-netas criam uma gata arisca, mas fofíssima, chamada Chica, a quem amam de paixão. De repente, a parada é a seguinte: para onde irá a gata arisca, mas fofíssima, chamada Chica? Sogros e sogras de ambos os lados não demonstram muito entusiasmo em adotá-la.

Então entrei de gaiato no navio: ontem visitei Chica, aqui perto de casa, em Botafogo, na Rua Conde de Irajá. Ela, sem imaginar a discussão que aqui fora, no mundo dos humanos, se trava sobre o futuro que lhe espera, dormia malemolente no sofá da sala, em meio a mar de almofadas multicores. Aproximei-me dela cuidadosamente. Acordei-a com um afago. Ela me olhou com aqueles olhos que só Elizabeth Taylor tinha. Irresistíveis. Conversamos um pouco. Quase namoramos.

Voltei para casa com a estranha sensação de que os gatos voltarão a invadir a minha vida. O que fazer, caro leitor? Devo resistir? ou não?

PS: Embora esta crônica seja, aparentemente, sobre a galinha e os gatos e os homens de minha vida, quero dedicá-la a um cachorro. Trata-se de garboso e carinhoso golden retriever chamado Martim, nascido no Lago Norte, em Brasília, em 2007. Ele não me pertence. Mas foi  presente de aniversário que dei a grande amigo-quase-amor, daqueles que ficarão para sempre (ainda há amigos-quase-amores que ficarão para sempre). Ainda que alguns rios e mares possam eventualmente nos separar. (Eu e Martim e esse grande amigo-quase-amor, coisas da vida, estamos temporariamente afastados).

No último encontro que eu eu Martim tivemos, em apartamento da Glória, ele me fez os mimos de sempre; abraçamo-nos efusivamente; mas, a partir de certo momento, percebi-lhe certa ansiedade: passou a morder a minha mão, com vigor que não lhe era peculiar. Reclamei. Mandei-o parar. Ele recuou. Mas as marcas dos dentes dele ficaram nas costas de minha mão direita por alguns dias. Pena que desapareceram. Quem sabe com essas mordidas bruscas , estivesse querendo deixar alguma marca dele no meu corpo, talvez por inferir que demoraríamos muito tempo para nos revermos? 

Melhor deixar o rio seguir o curso que tiver de correr. Let it be. Let it blood. Whatever will be, will be.


..

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O CRIME SEM CASTIGO DE DONA BARATINHA (OU UMA NOITE DE SOM E FÚRIA DO CRONISTA)

Dona Baratinha, o caralho! O inseto voador que entrara pelo basculante do banheiro, naquele fim de dia aziago e sombrio, me pareceu mais, tal o grau de raiva e de ira e  de desespero acumulados que sufocavam o meu peito não-mais-varonil, um boeing-da-Gol-desgovernado-na-selva-amazônica que pretendia aterrissar na minha cabeça em transe, e transformá-la em farofa de paçoca.

Era 17 de dezembro de 2010 na ex-capital federal. Dia da semana: sexta-feira. Hora: por volta de meia-noite. No apartamento a boreste, uma mulher parece gemer de dor; grita Para! Para! Pelo amor de Deus pára!; em seguida, inexplicavelmente, tudo volta a mergulhar em silêncio sepulcral.

(Não fora exatamente um dia bom para este cronista e, pelo que pude ouvir, também não o fora para a vizinha do apartamento a boreste, e, ok, provavelmente, também não o fora para boa parte dos outros sete milhões de terráqueos que habitam este vale-de-lágrimas-perdido-no-espaço-sideral. O horósocopo dizia, os e-mails diziam, o calor sufocante dizia, os não telefonemas diziam, os bem-te-vis que me acordam pela manhã diziam, o diabo a quatro dizia. Mas, mesmo assim, acordei. Fazer o quê? Mesmo asssim a vida pulsava, cazzo. Fui caminhar no Aterro do Flamengo, e, na sequência, deixei o rio seguir o curso - tipo let it be, tipo let it blood. Foi o meu erro. Deveria ter trancado todas as gavetas, ter me jogado dentro, e me fingido de morto. Mas não. Deu no que deu: horror, horror, horror).

Mais previsível que final-de telenovela-seja-de-qual-autor-for, não deu outra: assim que avistei aquela enoooorme barata voando em minha direção, resolvi: não seria também um bom dia para aquela criatura da ordem Blattaria que surgira do nada, e que, decretei, para o nada voltaria.

Ao contrário de alguns homens e da maioria das mulheres, não subo em cadeiras e sofás, ou emito gritos histéricos quando vejo baratas. Tenho certo nojo delas, é verdade. Mas não chego a odiá-las, a ponto de matá-las a sangue frio, como o fiz nesta noite de sexta-feira de canicular verão carioca. Na verdade, quando as avisto nas pistas do Aterro do Flamengo ou circulando lépidas e fagueiras por ruas e praças cariocas, evito pisá-las. Desvio-me desses insetos, e sigo em frente. (Viva e deixe viver: esta frase, aliás, poderia ser  o epitáfio do meu túmulo; fica a sugestão).

Mas naquelea noite aziaga de 17 de dezembro, aquela barata incauta e desavisada, talvez vinda de algum evento festivo com grupos de amigas (afinal era noite de sexta-feira), estava na hora e no lugar errados. Eu escovava freneticamente os dentes, como se quisesse limpar não apenas os dentes, mas também o corpo, a alma, e os cambau. Já cometia esse ato de autolimpeza dentária havia quase dez minutos, e, se essa barata invasora não entrasse em cena, talvez passasse o resto da noite escovando os dentes, o corpo, a alma, e, basicamente, os cambau.

A barata invasora invadiu o banheiro de forma algo atabalhoada. Talvez a luz forte em contraste com a noite escura de onde viera a tivesse cegado momentaneamente. Ou, quiçá, tenha saído de alguma farra homérica onde bebera todas e cheirara todas, e estava, como se dizia antigamente, pra de Bagdá. Sabe-se lá. O fato: fez voo rasante sobre a minha cabeça, e aterrissou, algo lânguida (o que legitimaria a tese de que haveria se drogado em algum boteco sórdido do Baixo Botafogo), a poucos centímetros dos meus pés. Olhei-a, inicialmente, com curiosidade: agitava freneticamente as antenas, como se quisesse descobrir desesperadamente onde diabos fora se meter.

Achei-a até simpática: tinha, diria, até algum glamour: ostentava lustroso corpo de tom marrom vivo e cintilante; e tinha asas firmes e longas. Por um momento (insano, admito) imaginei: talvez estivesse ali a centímetros dos meus pés a versão barata (com e sem trocadilho) da Cate Blanchett. Ou, mais provavelmente, da Lady Gaga. Mas, num átimo, o meu HD mudou inesperadamente de rota:  passei a rememorar todos as ocorrências e, principalmente, as não ocorrências do dia.

Aquilo deu nisso: transformei-me no mais cruel e sanguinário bandido do velho oeste. Ou melhor, do Baixo Botafogo.

Sem coldre, logo sem pistola no coldre, lembrei de máxima oportuna do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (´pensar de novo a cada nova situação´) e improvisei o ataque com o que estava ao alcance da mão. Arranquei a sandália havaiana verde do meu pé direito numa rapidez digna de Usain Bolt, a ponto de a barata invasora não ter nem tempo de rezar alguma oração para o santo de devoção por quem os sinos dela dobrariam (quem sabe não existiria, ou existirá, uma Nossa Senhora das Baratas e dos Grilos e das Moscas e dos Gafanhotos?).

Em questão de microssegundos, pude atestar para os devidos fins: as Havaianas, além de não soltarem as tiras, eram a arma perfeita para abater aquela barata invasora - e,  por tabela, todos os diabos, todos os recalques, todos os não telefonemas, todos os não e-mails, todos os nãos, enfim, daquele aziago 17 de dezembro de 2010.

Fulminei-a, sem dó nem piedade, com série interminável de chineladas. Foram tantas e tão raivosas, e tão impregnadas do pathos daquele deus-irado-do-velho-testamento, que, dessa sequência de incontáveis golpes, resultou o seguinte quadro: a) a barata virara ex-barata; submetida a tão inclementes e violentos golpes, o que antes fora inseto agora se pulverizara em quase invisíveis gotículas de pó e minúsculos fiapos.  b) empreguei tal força e tal velocidade no ato de pulverizar a barata invasora ( agora ex-barata-invasora) que o dedo apontador da minha mão direita doía terrivelmente ao final do embate, e ainda doeria bastante nos dias seguintes.

Embate finalizado, senti-me de alma lavada, e sem culpa alguma. Era como se a cada chinelada desferida naquela pobre e indefesa e incauta barata estivesse me livrando (enganosamente, admito) dos terríveis eventos e não eventos do dia. Lavei as mãos cuidadosamente. Voltei a escovar os dentes. Apaguei todas as luzes. Deitei a cabeça sobre o travesseiro 1. Abracei-me ao travesseiro 2 - e dormi com os anjos.

Não, não sou um monstro, caro leitor - mas também não sou de ferro.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O PADRE, A GOSTOSA DEVOTA, E AS ESTRELAS QUE AMEAÇAM CHEGAR, MAS NUNCA CHEGAM

Sic itur ad astra. Passei boa parte de minha adolescência com esse mantra em latim enfiado a  fórceps na minha cabeça. Melhor: mais exatamente, bordado no escudo da camisa da farda cáqui que vesti entre os 10 e os 14 anos no Ginásio do Padre (como era mais conhecido na cidade) ou Ginásio de Jequié (nome oficical da instituição). Bahia. Era final dos anos 1960, e estudava em escola particular comandada com mão de ferro pelo vetusto monsenhor Leônidas Spínola (nem tão vetusto assim, o futuro provou: abatido em pleno voo pelas fraquezas da carne, abandonou a igreja tempo depois para se casar com uma de suas mais gostosas devotas).

Pior: sem o latim no nosso cardápio didático-pedagógico (retirado algum tempo antes), não sabíamos que merda significava aquela frase que estampava nosssos corações, mentes e  bolsos das camisas cáqui.

Até que um dia, alguém (talvez a professora de geografia, a senhorita Edeltrudes P?.) nos fez luz (parcial, admito; mas nos arrancou de alguma maneira das trevas da ignorância nas quais nos afundávamos a respeito daquelas letrinhas que estampávamos no peito:  - A frase latina Sic itur ad  astra significa Assim se chega às estrelas.

- Assim, como?  Perguntamos em coro. A professora Edeltrudes P. se fez de desentendida; botou e tirou os óculos fundo de garrafa (que escondiam mulher, diria, até bonita, diria mesmo, até gostosa), e deu de ombros, em assumida retirada estratégica. Mas, antes de sair da sala, atendendo aos nossos insistentes apelos de esclarecimento, disse a reveladora e esclarecedora frase a seguir (ao mesmo tempo que mexia nervosamente as mãos e puxava para baixo do joelho a saia justa azul): - Assim, ora bolas. Assim!

A vaguíssima assertiva disparada pela professora Edeltrudes P. poderia, de fato, àquela época em que ainda começávamos a mergulhar nos mistérios do viver e do morrer, significar absolutamente nada. Mas depois, já à beira dos vinte anos, e já morando em Salvador, e já não mais sob as saias e as asas da mãe amorosa e querida, descobri: esse era exatamente o xis da questão, o busílis irresolvível que nunca decifraríamos, ainda que vivêssemos mil anos.  O mapa (parcial) da mina: sim, sim, para alguns, ou para muitos de nós, estrelas brilhantes nos esperariam (em termos menos metafóricos: a felicidade, o êxito profissional, ou, enfim, saber como sair das enormes armadilhas e encrencas que a vida nos armaria). O problema seria descobrir o que aquele enigmático assim pretendia significar.

Um pouco depois dos vinte anos, ainda pouco machucado, mas já devidamente machucado pelas diatribes da sorte, nessa vã tentativa de tentar chegar às estrelas, enfim percebi: o xis da questão, o busílis irresolvível  de nossas efêmeras e fugazes existências seria decifrar o enigma que aquele assim revelava.  Ou seja, nos diziam, melhor, insinuavam, que deveríamos chegar a algum lugar.  Mas, extrema sacanagem do nosso comandante-em-chefe de plantão (que, a depender das longitudes e latitudes terrestres,  ora poderá atender pelo nome de Deus, ora de Alá & ora de outras derivações), o desvendar-o-labirinto que a palavra assim continha e abarcava era tarefa pessoal e instransferível de cada um de nós. (Era assim, tal e qual Adão & Eva, noblesse oblige, que começávamos a nos foder, e a descobrirmos o quão infernal a vida pode ser - e é).

Essa busca frenética, mas  legítima, desse sentido da vida que a palavra assim ocultaria (afinal de contas, até o mais imbecil dos idiotas já nos perguntamos que merda estamos fazendo neste vale de lágrimas cada vez mais espetaculosamente absurdo), teria desdobramentos posteriores na nossa vida adulta,  quando ainda mais candentes questões existenciais continuariam pipocando. Tipo: 1. nossas demandas reprimidas sobre o fato de querermos saber de que porra viemos e para que porra iremos; 2. ignorâncias abissais sobre ocorrências diárias e banais (a garota do vizinho que, aos três anos, morreu de câncer; o papagaio-do-meu-cunhado que de repente fora fulminado por  enfarte fulminante; aquele maestro famoso de Brasília que pegou o avião errado no dia errado, e acabou se liquefazendo no fundo do Oceano Atlântico; 3. coisas assim, triviais assim, mas, quase sempre, enigmáticas e inexplicáveis assim.

Esse vácuo, esse desentendimento sobre o sentido de nossas existências, vem de desde tempo imemoriais - e,  desde tempos imemoriais, o homem tenta desesperadamente tirar coelhos da cartola para nos fazer crer que algo faz sentido, mesmo que nunca nada faça, nem fará sentido - mesmo que nunca haja nada de novo debaixo do sol, nem nunca haverá nada de novo debaixo do sol.

Alguns desses coelhos tirados da cartola:
a) religiões díspares (as crenças religiosas, do catolicismo ao bramanismo, passando pelo candomblé, tentam nos facilitar a existênca, e, em síntese, evitar que enlouqueçamos, que nos matemos uns aos outros e nos matemos a nós mesmos;
b) psicanálises diversas, da ortodoxia freudiana mais racionalista aos lúdicos e alegóricos pais de santo que tentam colocar alguma ordem no caos da vida humana;
c) magias variadas, da astrologia, dita científica, à taróloga que vê nas cartas o presente-passado-furo, passando pelos que veem o que vai acontecer daqui a pouco nas borras de café depositadas no fundo de xícaras;
d)  culturas de autoajuda das mais criativas, que vão de livros de Paulo Coelho e Padre Marcelo a filmes, romances, peças teatrais, telenovelas; passando pela publicidade rastaquera que pode levar a nos fazer crer que o sentido da vida está no carro do ano, nas roupas de grife do ano e nos modelos de aparelhos celulares do ano;
e) drogas científicas legais e ilegais de portes diversos, do crack à cocaína, passando pela vodka Absolut, pelo energizante Red Bull, pelas cervejas-que-descem-redondas e as que não-descem-redondas, pelo Rivotris e Prozacs de última geração - e etc etc etc - e põe etc nisso.
f) mesmo com essas drogas todas em plena explansão mundo afora, a cobra continua fumando, e, pelo andar da carruagem, o que a cobra está fumando, talvez possamos inferir, não é cigarro-comum-daqueles-que-dizem-dá-câncer.

Há conspiração cósmica em curso (e que bom que haja essa conspiração cósmica em curso; precisamos de ópio, pois não?). Objetivo: tentar, de maneira bem-sucedida, nos fazer crer: vivemos no melhor dos mundos. Nada contra. Apenas tento registrar, caro leitor, a maneira como as coisas de fato se dão. É bom ter consciência de como as coisas se dão (Ou não?). Adoramos nos vitimizar. Adoramos dizer, seja em mesas de bar, ou em divãs de analistas: nessa roda-viva na qual vivemos somos sempre manipulados. Não é bem assim. Sabemos dessa diuturna manipulação, desse diuturno adestramento ao qual estamos submetidos, e gostamos que seja assim, precisamos que seja assim.

Moral da história: carecemos de pão e precisamos de circo, em doses equânimes. (Quem duvidar que atire a primeira caixa de rivotril, ou de algum outro tarja-preta qualquer).

Confesso, sem culpa alguma:
1. já usei, e ainda uso algumas das drogas citadas acima;
2. rezo quando a barra pesa, principalmente em aviões que passam por zona de turbulência, ou quando, desesperado, percebo que aquele ansiado e-mail nunca chegará; sempre que passo na porta da Igreja de São José, na Praça 15,aqui no Rio de Janeiro, adentro o templo, prostro-me diante do altar, rezo um pai-nosso contritamente, e peço proteção para familiares e amigos queridos;
3. faço psicanálise, alternadamente, desde os 17 anos (agora estou com 57); já sentei em divãs de freudianos, junguianos, lacanianos, e o diabo a quatro; e até mesmo suportei por longos meses certa psicanalista de Brasília que fumava feito uma locomotiva a vapor e que exigia o pagamento da sessão em cash;
4) já consultei pais de santo, tarólogos e astrólogos - e sempre quis crer piamente nas previsões que me faziam (principalmente nas boas e que, infelizmente nunca se materializaram); já me enfiei numa escura caverna da praia de Ondina, em Salvador, enquanto pai de santo me cobria de palhas e de ornamentos em tons de ocre, e dançava ao meu redor, e repetia palavras incompreensíveis, e me massageava com ervas muito cheirosas, e eu tentava entrar em transe mas não conseguia entrar em transe, caralho.

Enfim, sou ser humano como outro qualquer. Às vezes acredito: todas essas ações-com-a-intenção-de-dar-alguma-ordem-ao-que-nunca-terá-ordem-alguma podem ter me ajudado a não sucumbir, e a continuar vivo. Em outras vezes, descreio de tudo isso e concluo:  ainda não morri (´de morte matada´ ou ´de morte morrida´, como dizia o meu pai), porque não chegou a minha hora. Simples assim.

Desses oráculos todos que já consultei , nunca esqueci de certo astrólogo paulistano, que me atendeu em apartamento confortável da Rua Pamplona, no bairro Jardins, em São Paulo, no começo dos anos 1990. Procuradíssimo, só consegui ser atendido depois de mais de três meses de espera. Ao me atender, praticou ações, digamos, mágicas que me impressionaram:
a) traçou-me, a partir de mapa astral feito com antecedência a partir de dados biográficos que havia lhe passado, perfil psicológico irretocável. Em pouco mais de meia hora, resumiu-me psicologicamente de maneira tal que talvez nenhum dos muitos psicanalistas   que frequentei, e frequento, o fizeram;
b) previu-me futuro venturoso, mas a longo prazo: ´As coisas vão demorar para acontecer com você, mas vão acontecer. Você tem lua em aquário e ter lua em aquário é algo extraordinário que lhe garantirá um mundo de possibilidades profissionais a longo prazo´.
c) já no fim da consulta que durou duas horas, quando já me levantava para sair, puxou-me pelo braço, e me disse o seguinte: - Meu caro, deixe-me lhe dizer algo que talvez não devesse lhe dizer, mas vou lhe dizer: quanto mais longe do lugar onde você nasceu você morar, mais feliz você será.

Vinte anos depois, ainda me pergunto: será que eu já não deveria ter me mudado para a Austrália? Ou para o Japão? Ou para o Timor? Ou para Marte? O Astra do meu Sic Itur Ad Astra não estaria do outro lado do mundo, quiçá da galáxia?

Pergunto-me também: por que diabos essa minha lua em aquário nunca dá o menor sinal de vida, e se finge de cega, surda e muda essa filha da puta, enquanto me perco em becos sem saídas como vem ocorrendo nas última estações?.

Só me resta esperar. Só me resta respirar.

O futuro a Deus, Alá,  e derivações congêneres pertence. Ou não?