domingo, 22 de maio de 2011

COMÉDIAS DA MORTE PRIVADA (OU DO MUNDO NADA SE LEVA)

História 1

Local: redação da Tribuna da Bahia; manhã de outubro de 1982. Ânimo geral: agitação, alvoroço; mais exatamente: adrenalina pura. Motivo desse superlativo, digamos, tititi: travam-se discussões acirradas sobre como registrar, com todas as nuanças e detalhes possíveis, nas páginas do jornal do dia seguinte a grande tragédia da tarde anterior: acidente aéreo matara treze políticos  baianos, entre eles, Clériston Andrade, então candidato ao governo da Bahia. O chefe de reportagem, a bordo de púlpito improvisado, talvez a própria mesa de trabalho, brada, enfático, como se de nós, pobres e mal pagos repórteres de pequeno jornal de província, dependesse a salvação da raça humana de  hiperataque de forças alienígenas. Determinado, e conhecedor do que cada um de nós sabíamos fazer de melhor, escalava sem titubear:  - Fulano faz isso, Beltrano faz aquilo, Sicrano faz aquilo outro.

Na minha vez, ele, sempre à guisa de general escalando tropa para entrar em combate, vocifera: - Você é bom nessa coisa de fazer perfis, de descobrir boas histórias. Então sua missão, curto e grosso, é a seguinte: - Cola na viúva do candidato! Entendeu? Vão estar lá outras doze viúvas, mas você não vai estar nem aí para elas, a viúva que vai lhe interessar é a viúva de Clériton Andrade, entendeu? Se a viúva de Clériston Andrade entrar no banheiro pra fazer xixi, você entra no banheiro atrás dela. Cola na viúva! Entendeu, ou quer que eu desenhe?

Não, não precisava desenhar, havia entendido tudo muito direitinho. Resultado: nas cenas seguintes, primeiro, no velório no Palácio da Aclamação, depois, no translado do corpo-do-candidato-à-governança-estadual-que-falecera-tragicamente em carro do corpo de bombeiros, e, finalmente, no Cemitério do Campo Santo, me tornei a sombra incansável da viúva Ceci Andrade. Aplicadíssimo, caneta Bic e bloquinho improvisado a partir de folhas de papeis de pauta (nas quais também datilografávamos nossas reportagens) na mão, observava tudo, e anotava tudo. Rabiscava frases assim: ´a viúva assoou o nariz com lenço de linho branco´; `a viúva teve crise de choro ao abraçar um dos filhos´. Enfim, escrevia tudo  o que via e ouvia - e escrevia tudo o que via e ouvia numa letra que só eu entenderia depois; ou não, e então apelava para a velha e (ainda; afinal, tinha 20 e poucos anos anos) boa memória.

De início, Dona Ceci Andrade estranhou a minha figura tão próxima dela, literalmente colada nela, mesmo que usasse como arma  apenas caneta Bic quase sem tinta e bloquinho improvisado. Antes que pensasse que fosse algum tarado ou algum maníaco-que-perseguisse-viúvas-recentes, lhe cochichei, na maior cara de pau (repórter que não for cara de pau morre de fome): - Sou jornalista e minha missão é ir aonde a senhora for, seja aonde for.  Ela me olhou com cara assustada. Depois voltou a chorar. Mas fomos em frente. Senti-lhe a respiração ofegante e emocionada, quando se debruçou sobre o caixão do marido morto, e chorou. Registrei-lhe o rosto e os braços cobertos de suor quando, já a bordo do caminhão do Corpo de Bombeiros, sob o sol cáustico de Salvador, permanecia em vigília ao lado do corpo do marido. Enfim, cumpria a minha missão: colei-me na viúva.

O pior estaria por vir. Da entrada do cemitério até o local do sepultamento, massa humana de dimensões notáveis nos cercou, o que fez com que eu e Dona Ceci Andrade nos tornássemos, digamos, mais íntimos ainda. Mas seria poucos metros depois, à beira da sepultura recém-cavada no chão, onde o corpo de Clériston Andrade seria enterrado, que  pororoca humana de proporções amazônicas se deu. De um lado: Dona Ceci, eu, parentes, amigos, e combativos cordões de puxa-sacos. De outro: o rotundo Antonio Carlos Magalhães, o então imperial e todo-poderoso governador da Bahia, acompanhado de quatro ou cinco espadaúdos seguranças, parentes, amigos e combativos cordões de puxa-sacos.

Nesse exato momento pensei que perderia o prumo, e não conseguiria continuar colado à Dona Ceci Andrade até ao final da cerimônia. Braços e mãos e pés diversos me empurravam em várias direções, mas resisti. Mantive-me firme (e ainda anotando tudo com a canetinha Bic no bloquinho improvisado) e forte. Quando Dom Antonio Carlos Magalhães e Dona Ceci Andrade se abraçaram emocionados e choraram a cântaros, estava tão colado neles que pude ver em superclose a suada e monumental papada do  governador se chocar contra a testa suada da viúva, e pude ouvir o seguinte diálogo (e, neste exato momentos, ossos do ofício, algumas gotas das salivas emocionadas de ambos respingaram em mim):
Ele - Seu marido era um grande homem. A Bahia perdeu um grande homem! 
Ela: - Obrigada, senhor governador, obrigada.

Coisas da vida (ou da morte?): nesse momento em que clima de absoluta emoção pairava sobre os circunstantes, em que até os seguranças de ACM choravam, e, se duvidarem, também eu chorava, um deus ex-machina-algo-irreverente introduziu elemento inesperado em cena. Um fétido cheiro de ovo podre, ou de seja-lá-o-que-fosse-podre, emanou do meio de nós como um vulcão invisível, mas fedorentíssimo. Em outras palavras: perdão leitor, alguém peidou. Juro: não fui eu. Teria sido Dom Antonio Carlos Magalhães? Teria sido Dona Ceci Andrade? Ou um daqueles cinco espadaúdos seguranças que nos rodeavam?

Não coloquei essa escatológica ocorrência na reportagen que escrevi na Tribuna da Bahia, e que foi muito elogiada pelo meu chefe de reportagem, que me enalteceu com as seguintes palavras: - Você, meu querido, não apenas colou na viúva; diria mesmo que você se colocou no corpo a e na alma da víuva.

Mas vou lhe contar um segredo, caro leitor: meio assim como um quem-matou-odete-roitman-particular, de vez em quando volto a me perguntar: afinal quem teria peidado naquele momento solene à beira da cova do finado Clériston Andrade?

História 2

Local: redação da Folha da Tarde, mais exatamente da editoria de Variedades, São Paulo. Estamos em 1988. Estado de ânimo dos circunstantes: certo tédio. Parecia ser daqueles dias no qual se pode ter a (falsa) impressão de que nada acontece no mundo do show business e do não show business. Quando isso ocorria, nós repórteres tremíamos: significava que o chefe (no caso, a chefe) de reportagem nos mandaria apurar assuntos frios, banais, desinteressantes, enfim qualquer bobagem que lhe passasse pela cabeça. .

De repente, após telefonema recebido, certo ar de felicidade estampou-se no rosto da chefe de reportagem, e ela me convocou, e discursou:- Seguinte: simplesmente morreu Miroel da Silveira, um dos mais importantes críticos de teatro do Brasil O corpo dele está sendo velado na Capela do Hospital Samaritano, em Higienópolis. Vá pra lá correndo. Todos os mais importantes artistas do teatro de São Paulo e do Rio de Janeiro devem estar lá, e quero que você obtenha depoimentos emocionados, emocionados, entendeu bem?, desses artistas todos. Siga pra lá imediatamente. Não é longe daqui, pegue o dinheiro do táxi com a secretária, e me traga uma matéria sensacional, sensacional, certo?

Peguei o dinheiro do táxi, mas segui até à capela do Hospital Samaritano, em Higienópolis, a pé. No caminho, pensava na merda de pauta que a puta da chefe de reportagem havia me passado, simplesmente para botar alguém do time de repórteres dela na rua (chefes de reportagem têm trauma de deixar repórter sem fazer nada; quando isso acontece, as instâncias superiores costumam lhes rotular de incompetentes). Ok, sabia (e sei): Miroel Silveira havia sido crítico teatral importante, fundamental para o teatro brasileiro, mas duvidava muito que a morte dele provocasse comoção tal a ponto de os mais importantes artistas brasileiros estarem no velório dele àquela hora da tarde de inclemente calor paulistano.

Mas fui. Ao adentrar a capela do Hospital Samaritano, verifiquei:  realmente havia na parte central da pequena igreja caixão cercado por castiçais de velas e muitas coroas de flores - e mais ninguém. Não havia viva alma ao redor. Aproximei-me para checar se aquele morto solitário era realmente o crítico teatral importante que a chefe de reportagem havia me falado.  Não adiantou muito: havia realmente homem morto dentro do caixão, mas como nunca havia visto Miroel Silveira, pessoalmente ou em fotografia, aquele homem morto ao meu lado poderia ser, de fato, um-dos-críticos-teatrais-mais-importantes-do-país, mas poderia ser, também, sabe-se lá, um Jacob-das-Couves qualquer que morasse no bairro.

A situação era absolutamente insólita: naquele silencioso salão apenas eu e um caixão, cujo ocupante eu não tinha certeza quem era, mas que minha chefe de reportagem garantira que era Miroel Silveira. Por quase uma hora  permaneci  naquela situação quase beckettiana, com agravante: eu não sabia que porra estava esperando; e, muito menos, por que a porra da minha chefe de reportagem me pôs naquela fria. Quase surtado, de repente me veio à idéia, já que nenhum outro circunstante famoso ou não comparecera: entrevistar o próprio morto, e a minha primeira pergunta, claro, seria: - O senhor é mesmo Miroel Silveira, cara-pálida?.

Antes que cometesse tal insanidade, entraram no local duas senhoras vestidas em vaporosos vestidos negros. Olharam-me com desprezo (tudo bem; com o tempo, nós, repórteres, ossos do ofício, aprendemos a enfrentar olhares de desprezo). Mas fizeram pelo menos a caridade de identificar o homem que eu velara solitariamente por mais de uma hora. Uma delas, a mais gorducha, bradou em prantos, enquanto se debruçava  sobre o esquife: - Miroel, Miroel!

Presumi: seriam parentes do morto, e não achei de bom-tom, nem sintoma de vida inteligente, perguntar-lhes algo a respeito do morto célebre. Fiquei, respeitosamente, mais algum tempo no local, e como nem Regina Duarte nem Paulo Autran nem Fernanda Montenegro (como minha chefe de reportagem garantira) apareceram, piquei a minha mula. Voltei frustrado à redação, novamente a pé, e me perguntando: por que diabos eu e o cadáver de Miroel Silveira tivemos que ficar sozinhos numa capela durante mais de uma hora no meio de uma tarde quente paulistana dos anos 1980?

História 3

Dois anos antes: 1986. O chefe de reportagem era outro. Mas era o mesmo jornal, a mesma editoria de Variedades, a mesma tarde sem grandes ocorrências culturais, e o mesmo pequeno exército de repórteres enfileirados, todos ansiosos por saber o que vamos cobrir. Olhamo-nos de maneira cúmplice, e percebemos: o nosso chefe de reportagem demonstrava sinais de nervosisimo intenso, o que atestava para os devidos fins: essa era uma daquelas tardes entediantes que teríamos que fazer a pauta que o mestre mandar, seja lá que merda fosse.

De repente, o chefe me chamou, e disparou: - O ator Emile Eddé morreu! Levei algum tempo para ligar o nome à pessoa, mas finalmente lembrei: era um ator boa-praça, que trabalhava em teatro, tevê e publicidade, não exatamente um Paulo-Autran, mas um ser humano bacana, enfim.. A missão a mim destinada: - Você vai pegar o telefone e repercutir a morte dele, escutar opiniões a respeito da importância dele para o teatro paulistano.

Tive ganas de esganá-lo. Não existe nada mais execrável no jornalismo do que ficar ligando para artistas e celebridades pedindo opiniões sobre alguém que acaba de morrer (e essa prática execrável continua sendo exercida até hoje). Mas respirei fundo, contei até dez, e fui cumprir minha missão. Primeira tarefa: descobrir artistas que conhecessem o ator, não tão célebre assim. Penalizados, alguns colegas me ajudaram, e, ao final, consegui lista de dez a quinze telefones de pessoas  que, provavelmente, poderiam dar alguma opinião sobre o falecido.

Fiz sete ou oito ligações (os entrevistados falaram o óbvio, ele era ´genial´, ínovador´, ´excelente ser humano´, coisas elementares assim. Alguém atendeu e disse que não tinha a menor ideia de quem se tratava.

Mas foi o diálogo ocorrido na ligação seguinte que me marcou para sempre. Ei-lo:
- Alô, boa tarde, eu sou repórter do jornal Folha da Tarde.
- Alô, boa tarde! Do que se trata?
- A senhora foi amiga do ator Emile Eddé?
- Fui,  não. Sou. Ele é uma pessoa maravilhosa.
- Estamos repercutindo a morte dele. O que a senhora achava do trabalho dele como at...

Não consegui concluir a frase. Apenas ouvi grito estridente do outro lado da linha, e uma voz de mulher que gritava:
- Mamãe, mamãe, o Emile Eddé morreu! Morreu!

Desce o pano.

sábado, 14 de maio de 2011

OS DIAS DE CÃO DE ROGELI SOUZA NAS RUAS, TERMINALES E PENSIONES DE ROMA

Túnel do tempo: voltemos a dezembro de 1988. Ainda meio zonzo com os efeitos da ´movida madrileña´ (regada a desenfreada agitação cultural e sexual), eu  buscava, desesperadamente. o balcão das Aerolíneas Argentinas, no Aeroporto de Barajas. Depois do êxtase dionisíaco que Madri havia me proporcionado por quase dois meses,  ansiava por ocorrências ainda mais insólitas em Roma, a cidade que visitaria a seguir, a cidade eterna, a cidade aberta de Roberto Rosselini.

Superlotava-me de (boas) expectativas: internamente, tal e qual deslumbrada cobrinha multicor, saltitava de alegria; mas, externamente, mantinha a pose blasé: tentava transparecer nervosismo-algum, como se já tivesse feito aquele voo Madri-Roma trocentas vezes. Mas estava superatrasado, e a porra do balcão das Aerolíneas Argentinas parecia ter se evaporado, sumido do mapa.

Foi quando tive de sair do personagem-contumaz-passageiro-da-ponte-aérea-Madri-Roma: em quase desespero, perguntei a peruíssima senhora que esbarrou em mim, a ponto de quase me nocautear com a quantidade colossal de perfume que usava (J´adore? Mas já fabricavam J´adore àquela época?). Ela ostentava cabelos e trajes em tons variados de cor de abóbora. Desculpou-se com voz de pato Donald, e a indaguei, aflitíssimo, num idioma, digamos, cinicamente globalizado:  - Vuelo para Roma. Aerolíneas Argentinas. Per favore. Donde? Disparou-me olhar misto de piedade e menosprezo, e, simplesmente, levantou o dedo indicador, em cuja ponta brilhava esmalte também cor de abóbora, e sussurrou, num idioma, digamos, cinicamente globalizado: - Acá, señor. Por acaso és cego? E partiu.

Respirei aliviado, e me juntei a fila caótica que disputava o cartão de embarque a cotoveladas e gritos em altos decibéis. Finalmente consegui chegar  em frente a esplêndida mocetona, ruivíssima, com peitos à Jane Mansfield. Ela olhava, desconfiada, para minha cabeleira (ainda) glauberiana. Mas demonstrou eficiência, conferiu meus documentos com agilidade e rapidez, despachou minha mochila ultragasta, e, em questão de segundos, me entregou o cartão de embarque, e me despachou com a seguinte frase: - Bon Vuelo, señora Rogeli Souza!

Pensei ter ouvido algo que realmente não ouvira (ecos talvez dos dioniosíacos e homéricos porres madrilenhos?), e fui em frente. Mas, ao sentar-me para livrar-me um pouco desses momentos de estresse, sentei-me para rápido café: ao olhar, displicentemente, para o cartão de embarque, entendi a frase dita pela funcionária ruivíssima e com peitos à Jane Mansfield. Estava lá com todas as letras, no nome do passageiro: Rogeli Souza.

Quase entrei em pânico. Mas, aos poucos, graças às duas xícaras de café e aos dois Dramins que engolira gulosamente, fez-se luz: a) o Rogeli advinha de Rogelio, como o nome Rogério é usado na Espanha (com, deduzi, o o final engolido). b) o Souza era o meu sobrenome materno (na pia batismal ungiram-me Rogério Reis de Souza Menezes), e os espanhóis adotam como oficial o sobrenome materno.

Tudo esclarecido, tudo resolvido, afinal Rogeli Souza partia para idílica visita a Roma, a cidade eterna, a cidade aberta de Roberto Rossellini, a cidade onde o céu seria o limite. Certo, caro leitor? Errado, caro leitor. Para mim e, por tabela, para Rogeli Souza, o inferno apenas começava.

No controle de passageiros estrangeiros do aeroporto de Fiumicino, meus cabelos glauberianos e meus trajes em tons riponga-perdido-no-tempo chamaram mais atenção do que a-mulher-toda-em-cor-de-abóbora que estava à minha frente, a qual pensei, e pensei erradamente, eclipsaria totalmente a minha humilde figura. Mas não. A-mulher-toda-em-cor-de-abóbora saudou efusivamente os agentes de imigração e passou incólume, lépida e fagueira. Eu não.

Puxaram-me para canto do grande salão, depois me levaram para sala menor. Perguntaram-me de onde vinha. Do Brasil, falei, e eles riram um sorriso sacana e debochado e cínico. Quiseram sabe para onde eu ia (disse que voltaria, em uma semana, para, menti, Madri). Fizeram-me de gato e sapato, e, quando perceberam que não tinha a passagem aérea de volta em mãos (na verdade, a ideia era voltar de trem para Barcelona), o pau comeu e a coruja piou: a) enfiaram a mão na mnha bunda; b) perguntaram pelas drogas que carregava na mochilla ou enfiado no culo; c) deram alguns puxões na minha cabeleira,  àquela altura mais glauberiana do que nunca; d) submeteram-me a alguns sopapos. e) só depois de examinar cada parte do meu corpo (e quase me excitei quando certo agente bem apessoado, que, de certa forma me fez lembrar o totêmico Giulianno Gemma, apalpou a minha genitália,  como se tivesse feito isso durante a vida inteira), me liberaram. f) Empurraram-me para fora da sala, e esbravejaram:  - Brasiliano de mierda!

Mais perdido do que cego em tiroteio, tentei avançar. Repeti-me, feito mantra: - Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Daqui-pra-frente-tudo-vai-ser-diferente. Ainda me restava, pensava, o lar cálido da amiga querida Luilda Guglielmi, que me acolheria em família logo depois desses tormentos inesperados. Mas não foi exatamente assim, caro leitor. Foi exatamente assim, caro leitor: utilizando um telefone público, no qual levei alguns minutos para acertar o buraco no qual devia enfiar a moeda de 1000 liras que me permitiria fazer ligação local, ouvi do outro lado da linha a seguinte e péssima notícia: - Non, a Luilda non está. A minha filha viajou para o Brasil e só ritorna próximo ano! E não deixou nenhuma mensagem falando de nenhum amigo brasileiro. Arrivederci!

O pai de Luilda Guglielmi bateu o telefone na minha cara. Ato contínuo, depois de xingar a minha amiga italiana que jurara que estaria em Roma e que poderia me hospedar quanto tempo quisesse, quis morrer, quis me imolar em praça pública, quis tomar formicida tatu com guaraná antárctica. Mas o meu lado A preponderou sobre o lado B, pensei em Scarlet O´Hara, no final de ... E o Vento Levou, e delirei: - Essas dificuldades iniciais na verdade me auguram bons momentos. Passarei dias felizes em Roma!

Ledo, ivo, e nagle, engano, querido leitor. Deveria ter invadido o primeiro avião de ida para qualquer lugar do mundo, e escafeder-me dali imediatamente. Não o fiz. Azar o meu: cumpri o carma que me cabia cumprir naquele exato momento de minha vida - e percorri o seguinte calvário, a seguinte via-sacra:

Primeira estação: ao constatar que não havia nenhuma casa de Luilda Guglielmi que me hospedaria em Roma, decidi pegar algum ônibus que me levasse até a região central da cidade, e lá descobrir módica pensione onde pudesse esticar a minha carcaça cansada. Depois de alguns diálogos de surdos com algumas pessoas (aos poucos, fui percebendo que o italiano fluente e corrido falado pelos romanos me soava tão latino quando o alemão ou o polonês ou o sueco), consegui deduzir: havia ônibus que me levaria até a região do Terminale (centro da cidade onde poderia encontrar muitas pensiones); e também consegui descobrir o guichê onde tais passagens podiam ser compradas.

Dirigi-me a esse guichê, e, depois de infindável fila, me vi frente a frente com italiano mal encarado, cara de parvo, magérrrimo, com covas profundas nas faces, e olhos de corvo velho, que me olhou com olhar intimidador. Gelei, mas balbuciei:
- Ticket pro Terminale. Ele não deve ter entendido patavina do que falei, mas como aquela era fila na qal se vendiam passagens apenas para a linha Fiumicino-Terminale, jogou sobre o balcão bilhete de cor marrom, e voltou a me encarar com raiva.

Então lhe perguntei quanto custava a passagem. Mas ele disse, seguidamente, o preço da passagem de maneira tão displicente e tão acelerada, que nunca conseguia entender o quanto custava a porra do valor da passagem. Resultado: repetia-lhe, seguidas vezes: - Quanto? Quanto? Quanto? (Enquanto isso, a fila de italianos que queriam também comprar bilhetes, crescia, crescia, e crescia).

O bilheteiro perdeu afinal a paciência, e urrou, repetidaamente, e cada vez com o tom de voz mais exaagerado, com todas as sobras de vida que ainda lhe restavam: - CINCO MILLE LIRA!  CINCO MILLE LIRA! CINCO MILLE LIRA, CAZZO!

Atirei a nota de cinco de mil liras sobre o balcão, e escafedi-me.

Segunda estação: Ao descer no Terminale, e abordar pessoas com única e fundamental pergunta (Pensione? Pensione? Pensione?),  ouvi as mais disparatadas respostas, e que me levariam a um caminho sem fim. Resolvi então descobrirr  a pensione onde me hospedaria por conta própria. De repente, vejo à minha direita, num prédio não exatamente convidativo (mas, àquela altura do meu romano calvário, qualquer espelunca de quinta me pareceria o Ritz de Paris), a seguinte placa: PENSIONE - 4.

Adentrei o recinto, que recendia a cheiros infectos; apertei o botão do elevador; alguns minutos depois se abriu gaiola pantográfica na qual entrei como se entrasse na garganta do diabo. Apertei o número 4. Mas o elevador parou no 2 - e percebi (pelo gingado da senhora gorducha que me recebeu à porta; e se podia ouvir ao fundo Ornella Vanoni cantando Abbracciame Forte,  e, também, clamores de cacarejos femininos irenéticos e lascivos) que naquele andar se localizava bordel e não a minha ansiada pensione.

A cafetina gorducha me puxou pelo braço, e senti-lhe o hálito que recendia a vagabundo e salame rançoso. Resisti ao assédio, e quase gritei: - PROCURO A PENSIONE! PENSIONE, CARALHO!

A cafetina gorducha, inconformada com a minha ideia fixa de encontrar uma pensione, e não um bordel, empurrou-me no elevador, apertou o número 4 do elevador, vociferou palavra não identificada em italiano, certamente cruento xingamento, e me bateu a porta na cara.

Terceira estação: finalmente, aleluia!, a ansiada pensione surgia diante dos meus olhos cansados. Fui recebido por mulher que parecia gêmea (e talvez fosse) da cafetina gorducha do segundo andar, só que sem maquiagem, e trajando roupas sóbrias, e ostentando certo ar de mamma (provavelmente resultado de muito ensaio), e um nome, digamos, quase sacral: Francesca.

O nosso diálogo de surdos (não entendia quase nada do que dona Francesa falava) teve final quase feliz. Eu me fiz compreender: queria quarto com macia cama de casal. Ela falou algo sobre banho, que não consegui decifrar exatamente. E empacamos diante do seguinte enigma: - Domani ou Domenica? - perguntava-me. Naquele estado de exaltação, era como se me perguntassem:
- Melancia ou melancia?  Encurralado, mentalizei um joguinho de cara e coroa, e arrisquei: - Domani.

Entrei no quarto, caí na cama desmaiado, e dormi o sono dos deuses. Fui acordado às 12 horas da manhã do dia seguinte com murros na porta. Dona Francesa gritava, a plenos pulmões: - Brasiliano, brasiliano. O tempo é finito!

Levantei desarvorado. Encontrei dona Francessa possessa. Falava aos berros, e, acordando aos poucos, pude perceber: urrava que o meu tempo de permanência na pensione havia acabado. Como assim? Falei em português: - Ficarei até domingo. Ela retrucou, cheia de empáfia: - Até domenica então, brasiliano,e não até domani, oggi, certo? (Ela voltou aos seus afazeres e eu, a dormir, e sonhar com Gina Lollobrigida fazendo oral em Franco Nero; e vice-versa).

(Nos três dias seguintes, parecia que o inferno astral tinha passado; verdade que, uma ou duas vezes, flagrei rapazes e moças injetando heroína nas veias nas escadas do prédio; normal, pensei. Pude então caminhar por cidade belíssima, visitei o Vaticano - descarada e brutal celebração de luxúria; e virei freguês diário do McDonalds (tentei comer nos restaurantes nativos, mas sempre pedia o prato errado); visitei o coliseu, flanei pelo Trastevere. Tudo parecia sonho de infância que se realizava. Até que...)

Quarta estação: dezembro em Roma, pleno inverno, o dia amanhecia às dez, e só acorrdava por volta do meio-dia. Acordo novamente com esmurrar de portas. Acordo gritando:  - Porra. Será que é a puta da dona Francesca me dizendo que hoje já é domenica? Mas domenica é só depois de amanhâ, caralho!

Mas a voz que ouço é grave e ameaçadora: - La polizia! La polizia!

Ficquei apavaorado. Pensei em me jogar pela janela e sumir na neve que começava a se formar lá fora. Mas os murros eram cada vez mais fortes. Concluí, sem dúvida alguma: - É o fim. Me fodi. Que porra vim fazer nessa merda de Roma?

Abri a porta. Entraram quatro ou cnco policiais.  Um deles me imobilizou no canto da parede. Digo que sou brasiliano, e eles começam a falar em francês comigo, e o diálogo entre surdos fica mais caótico ainda. Mexem em tudo. Não acham nada. Pedem o meu passaporte. Perguntam quando vou embora. Digo, agora sem pestanejar: - Domani. Eles vão embora; deixaram todas as minhas roupas sobre o chão. Senti vontade de chorar, e chorei. Foi quando dona Francesa, a bordo de pathos maternal, apareceu, acariciou-me os glauberianos cabelos, e disse, em italiano, mas, milagrosamente, ouvi tudo em português: - Não fique assim. Isso acontece todo dia. Essa região é muito perigosa. Ocorre muito tráfico de droga por essas ruas, meu filho!.

Quinta estação. Finalmente é domenica. Hora de partir. Pedi a conta a Dona Francesa, que me exibiu conta exorbitante. A diária combinada era 20 mil liras diárias e li naquele papel que devo pagar, em vez de 140 mil liras, 420 mil liras. Suspirei profundamente, e novamente novo diálogo de surdos se processou. Resumo da ópera: quando havia chegado, naquele momento em que ouvi vagamente a palavra banho, ela havia me dito que os banhos eram cobrados à parte. O quarto custava 20 mil liras. O banho, 40 mil liras cada.

Resignei-me (e jurei que começaria curso de italiano assim que voltasse ao Brasil). Paguei a conta que me deixou quase na miséria e parti..

Última estação: a de embarque. Eu, Rogério Reis de Souza Menezes (não mais Rogeli Souza, esse nome amaldiçoado que aquela funcionária peituda à Jane Mansfield do Aertoporto de Barajas, em Madri, colou em mim) peguei o trem para Barcelona, sem sequer olhar para trás.


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quarta-feira, 4 de maio de 2011

O ENCONTRO DE ODETE LARA & CATHERINE DENEUVE (OU O TEMPO, O TEMPO, O TEMPO)

Uma de minhas mil e uma obsessões: especular as motivações que fazem, no frenesi caótico da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, por exemplo, nossos cotovelos baterem, tocarem, de repente, ocasionalmente, nos cotovelos de outrem. E mais: que esse ocasional roçar de peles talvez seja o único encontro que teremos com essa inesperada pessoa em toda a nossa caudalosa e longeva (se for o caso) existência.  Ou não. (Talvez possamos encontrar essa pessoa ocasional em outro momento de nossas vidas, e essa pessoa ocasional se transformar em alguém fundamental nas nossas vidas. Ou não.).

Uma de minhas mil e uma desilusões: jamais, mesmo que vivamos mil anos, iremos decifrar essa emigmática charada que alguns atribuem ao acaso. Outros, ao destino. E que este cronista, em momentos de maior desvario, prefere atribuir  a algum deus bêbado que mexe um tabuleiro de xadrez (nosotros) como se mexesse a bunda da mulata bossa nova que caiu no hully gully.

(Corte).

Cena 1:
Cine Capri. Praça Inocêncio Galvão, também conhecida como Largo Dois de Julho, Salvador Bahia. Tarde/noite qualquer dos anos 1970, talvez 1974. Entediado com as tardes vazias, troco, sem pestanejar, a solaridade malemolente dos trópicos  pelo escurinho do cinema. Sentado nas últimas fileiras, como sempre o fazia, contemplo, contritamente, talvez pela duodécima vez a trajetória existencial de bela mulher loira que troca a vida burguesa de suas tardes também vazias pela possibilidade de foder com o homem que bem quisesse e  entendesse. A personagem se chama Severine. A atriz que a interpreta, Catherine Deneuve. O filme: A Bela da Tarde (Belle du Jour), dirigido por Luis Buñuel.  Numa palavra: êxtase.

(Corte)

Cena 2:
Porta de saída de avião da Air France recém-chegado de Paris. Aeroporto do Galeão. Rio de Janeiro. Em torno das cinco horas da manhã de um dia qualquer dos anos 1990, talvez 1993.. Depois de compactar-me por doze horas seguidas num assento ordinário da classe econômica, a escala carioca (antes de o avião seguir para São Paulo, meu destino final) me parece o mais abençoado dos bálsamos. Ainda assim, sentado na parte central da aeronave, deixo passar o resto da manada, e sou um dos últimos a sair. É exatamente esse fragmento de tempo de espera que me propicia o seguinte, e inesquecível, momento de deleite: ao adentrar naquele tubo que nos leva ao portão de desembarque, olho para trás, e vejo ninguém menos que Catherine Deneuve.
Ela me olha, belíssima, e sussurra: - Bonjour.
Penso em desmaiar, mas nunca aprendi a praticá-lo. Demonstro profissionalismo extremo, e replico: - Bonjour.
E foi só.
Depois 1: vejo-a de longe no free shop tomando café; estava acompanhado de homem que não consegui identificar.
Depois 2:  leio nos jornais paulistanos que a atriz francesa estava seguindo para Buenos Aires.
Depois 3: penso, bestamente, que, se aquele avião tivesse caído na vastidão do Oceano Atlântico, eu e Catherine Deneuve teríamos morridos juntos.

(Corte)

Cena 3:
Cine Liceu. Rua Guedes de Brito, ao lado da Praça da Sé. Centro de Salvador. Tarde/noite qualquer dos anos 1970, talvez 1973. Entediado com as tardes vazias, troco, sem pestanejar, a solaridade malemolente dos trópicos  pelo escurinho do cinema. Sentado nas últimas fileiras, como sempre o fazia, contemplo, contritamente, talvez pela duodécima vez, o mais retumbante dos filmes de Glauber Rocha: O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. E, nesse mais retumbante dos filmes de Glauber Rocha, o momento que mais me arrebata  é a cena em que a atriz Odete Lara, a bordo de vestido roxo translúcido (a ponto de revelar-lhe os belíssimos seios, rijos e entumescidos) surge, com a força de um vulcão incandescente, na janela de pobre casebre das brenhas do sertão baiano. Numa palavra: êxtase.

(Corte)

Cena 4:
Livraria Blooks. Anexo aos cinemas Unibanco Arteplex. Praia do Botafogo. Rio de Janeiro. Em torno das 17 horas de tarde qualquer do final de abril de 2011. Levanto os olhos do estande de livros no qual procuro certo romance do autor inglês Ian McEwan, e deparo com o olhar agudo de simpática senhora. Olha-me como se não me visse, e segue em direção a certa prateleira, na quall retira o exemplar de livro que não consigo identificar. Depois senta-se, sem pressa alguma, em grande mesa de leitura. Algo no meu cérebro dispara e me sugere insistentemente: eu já vira aquela senhora antes. Mas onde? Quando?
No momento em que passo no caixa para pagar o recém-comprado exemplar de Reparação, a luz se faz. Aquela senhora de 82 anos (nascida em 17 de abril de 1929, como soube depois  no Google), ali pertinho de mim, e que parece versão mais esbelta e mais loura de minha avó materna (morta quando eu era jovem petiz) é ninguém menos que Odete Lara.
Meu coração dispara. Penso em lhe assediar e, agora quando mais nenhum sinal de sensualidade aparente lhe arrebata, penso também em beijar-lhe respeitosamente a mão, e lhe dizer o quanto a cultuei (e a cultuo). Mas a velha timidez novamente me trava. Mantenho o ar blasé, como se acabasse de ver alguém que nunca me significara nada.
Depois 1: sento-me para um café, e observo-a de longe; folheia o livro cuidadosamente, a bordo de par de óculos que a torrna ainda mais vovozinha-do-sítio-do-pica-pau-amarelo.
Depois 2:  a velhinha coloca de volta o livro na prateleira, e uma mulher mais jovem se aproxima dela, e trocam algumas palavras.
Depois 3: as duas saem juntas em direção à Praia de Botafogo, e da mesa onde tomo café vejo aquela velhinha querida ganhar a rua e mergulhar na frenética multidão de final de tarde que faz regurgitar intensamente aquelas plagas cariocas.

Penso em segui-las. Mas não. Prefiro agradecer, ainda que possa se fingir de surdo, a esse deus bêbado - que mexe um tabuleiro de xadrez (nosotros) como se mexesse a bunda da mulata bossa nova que caiu no hully gully - por esses eventos inesperados, e sublimes, e extraordinários que nos ocorrem.

THE END.