quinta-feira, 24 de março de 2011

A QUEM INTERESSA SABER O TAMANHO DO PÊNIS DO POETA FERNANDO PESSOA?


Abstive-me de postar  o que quer que fosse neste O Lobo No Ar na semana passada. Motivo 1: afundava-me em questiúnculas pessoais aparentemente  insolúveis, e que não vêm ao caso. 2) mergulhava na leitura do arrebatador romance de Roberto Bolaño, Os Detetives Selvagens (sempre que leio esse escritor chileno-mexicano morto precocemente em 2003, aos 49 anos, quase creio que não haverá mais nada a ser escrito.)
Ainda imerso nas mais de 600 páginas magistrais de Os Detetives Selvagens, pensei em fazer o mesmo esta semana. Escrever sobre o quê?, perguntava-me. Mas hoje no final da manhã, tudo mudou. Como de hábito, lia importante jornal, mais exatamente as notícias culturais, quando deparei com o seguinte título de alto de página: Fernando Pessoa: genial, vaidoso e sem imaginação.
Quase enfartei. Mas adiei o enfarte, e li o teor do texto. Estarreci-me mais ainda (e, ainda bem, o enfarte não veio). A certa altura da matéria, que noticiava o fato de certo autor pernambucano estar lançando obra de cerca de 700 páginas sobre o escritor e poeta português, leio a seguinte pérola: ``O que se pensa que é imaginação, não é, tudo está ali, ao lado dele.´´

Perdão, leitores: mas que porra é essa (1)?  O que é a imaginação se não a nossa capacidade de captar o que está ao nosso redor e de transformá-lo, e de amalgamá-lo em pensamento e arte? Quantos contemporâneos de Fernando Pessoa viram quase as mesmas coisas que ele viu-vivenciou, mas foram incapazes de esculpir um dedo sequer de (boa) prosa e de (boa) poesia?
Fernando Pessoa é autor de obras desmesuradamente imaginativas como, por exemplo, O Livro do Desassossego  (o desassossego é de todos nós, seres humanos naufragados neste vale de lágrimas, mas quantos de nós seremos capazes de escrever sobre esse nosso eterno desassossego da maneira desassombrada com que ele escrevia?)

Perceber que alguém reduzia FP a  observador (e observador passivo; o observador realmente observador mais do que vê, imagina e processa o que vê) me fez abandonar temporariamente a prosa magistral de Bolaño, e soltar os meus cachorros. Arranquei o notebook que descansava sobre as almofadas desde ontem, e comecei, furiosamente, a escrever este post.
Voltemos ao ponto: o grau de bizarrice dessa, digamos, ´reportagem cultural´ prosseguia. Quase o ao final do texto leio a seguinte pérola de lesa-inteligência:  ``O (autor) pernambucano não tem provas, mas registra uma versão pessoal para o retraimento sexual do poeta: - Ele tinha um amigo, Antonio Botto, que era homossexual assumido, apesar de casado.  Ele contava ter ficado assustado com o tamanho do pênis de Pessoa, que seria muito pequeno. Não tenho como provar, mas minha explicação é que por isso o poeta não tinha coragem de se expor perante as mulheres.´´
Perdão leitores, mas que porra é essa (2)? Fazer relato biográfico de alguma importância histórico-literária no qual se afirmam coisas sem provas mais cabais poderá ter algum tipo de relevância? E esse freudismo barato de mesa de boteco sórdido (tamanho do pênis diretamente proporcional  à coragem pessoal e sexual)  deveria ir direto para a latrina e não para livro de 700 páginas que se pretende conquistar algum tipo de prestígio e respeitabilidade nos meios acadêmicos e não.
Essa subfofoca (nem revistas de celebridades, afeitas a revelações pessoais bombásticas, chegam a esse nível de revelação anatômica). Já pensou se em determinada matéria sobre Tony Ramos ou Marco Nanini , o repórter da Contigo! ou da Quem incluísse a centimetragem dos, digamos, caralhos de seus entrevistados para explicar essa ou aquela particularidade psicológica desses atores?
Ok. Quem quiser revelar a grandeza ou a pequenez de seus pênis que o façam (eu mesmo faria isso sem pejo, caso alguém se interesse). Mas, cá pra nos, who cares? O mundo se acabando no Japão; centenas de desempregados dormindo nas calçadas do Rio de Janeiro, e de Nova Délhi, e de Nairobi, e do Cairo; o planeta à beira de uma crise do petróleo que poderá detonar inflação endêmica mundo afora; ou seja, as trombetas do apocalipse tonitruam nos nossos cangotes, e alguém se jacta de escrever livro onde, entre outras constatações (que as outras sejam mais relevantes, espera-se), afirma que Fernando Pessoa, primeiro e único, tinha, perdão de novo, leitores, pau pequeno.
Como dizem no interior da Bahia: - Faça-me uma garapa!

sexta-feira, 11 de março de 2011

FÁBULA FUTURISTA INSPIRADA NOS XIXIS QUE INFECTAM NOSSAS ESQUINAS E MENTES

Perdão pela, digamos, licença poético-política: talvez possamos enxergar certa evolução no fato de a grande motivação da perseguição policial no Rio de Janeiro nos carnavais mais recentes tenha sido algo fora dos-padrões-de-alta-voltagem-de-criminalidade que marcam esta cidade, apesar dos pesares, ainda maravilhosa: milhares de cariocas (homens e mulheres) foram flagrados mijando e, eventualmente, cagando em vias públicas. Por vias tortas, essa mudança do rumo da prosa poderá estar nos sinalizando: a violência endêmica que marcava (e ainda marca) a capital carioca,  impulsionada pelo megatráfico de drogas que campeava (e ainda campeia) pelas dezenas de morros que nos cercam,  esteja de algum modo recrudescendo.

Há assumido tom de sofisma na minha conclusão a seguir, mas ouso concluir (e quem quiser que atire a primeira pedra):  o fato de agora prestarmos atenção  à prática de milhares de homens e mulheres mijarem e cagarem em vias públicas do Rio de Janeiro (e de Salvador, e de São Paulo, e de Brasília; e de outras capitais brasileiras e d´alhures) pode ser boa notícia, 

(Tão boa notícia quanto aquela que daria conta de que o maior problema de certo de lar de qualquer classe social havia deixado de ser o pai que bate na mulher e nos filhos com toalhas molhadas. Aparentemente o patriarca tirano teria abandonado a prática de bater na mulher e nos filhos com toalhas molhadas. Agora a questão central se transformara no fato de o maior problema desse lar de qualquer classe social ser agora o hábito adotado por um dos filhos de peidar no meio da sala na hora exata em que a família recebe visitas).

Caso o caro leitor ainda não tenha percebido, devo-lhe revelar, noblesse oblige: mijar em vias públicas, aqui e alhures, não chega a ser, digamos, modismo ou, para usar palavra da moda, tendência, e tendência torpe, desses últimos verões. As belas e cada-vez-menos-frondosas árvores do Aterro do Flamengo que o digam (se algo pudessem dizer):  dezenas delas estão condenadas  à morte e à demolição pela quantidade de urina que homens e mulheres despejam em suas raízes, fosse ou não carnaval, desde sempre.

(Mija-se, e caga-se,  em vias públicas desde os tempos em que Portugal brincou de descobrir o Brasil, e se intensificou nos tempos coloniais e, depois, imperiais - é bom que se ressalte,  o mau hábito era cometido em cidades d´aquém  e d´além mar. Em maior ou menor grau de caudalosidade, é fato inegável, mija-se, e caga-se sem parcimônia em jardins e praças e vielas de cidades de todo o planeta Terra. Em Salvador, por exemplo, o cheiro de mar e o cheiro de urina e fezes se misturam tão intrincadamente que parecem formar, digamos, iindissociável ecossistema olfativo – e que nos permite conjeturar que, em algum lugar do futuro, certo poeta-escritor poderá usá-lo como fator de inspiração, à guisa da Madeleine proustiana).

Donde se pode, cinicamente, admito, mas procedentemente, admito também, deduzir:  é quase um luxo podermos colocar esse assunto em discussão hoje em dia. Podermos discutir esse tema, outrora pueril em função da realidade hodierna que nos assolava (e que ainda nos assola),  em vez de discutirmos assuntos mais escabrosos, tipo a taxa média mensal de assassinatos no Rio de Janeiro, talvez possa significar certo avanço nos nossos padrões de (in)civilidade.

Quero deixar claro, antes que algum leitor dispare a primeira pedra e me acuse de defensor público desses mijadores e cagadores de vias públicas: acho essas práticas abjetas, ignóbeis, e incivilizadas.  Mas quero deixar claro também,  sem hipocrisias (e quem quiser que atire a segunda pedra) que, ainda bem, não somos deuses, logo somos falíveis, e confessar: já cometi essas práticas abjetas, ignóbeis, e incivilizadas um sem-número de vezes. Não pretendo justificar-me, mas devo atestar: tais ocorrências se deram por falta de locais mais adequados para, como diziam os antigos, ´satisfazer nossas necessidades fisiológicas´,  num raio de vinte, ou mais, quilômetros.

Certa vez, todos os sanitários públicos do Parque da Cidade, em Brasília, estavam hermeticamente fechados (era  um primeiro-de-janeiro). Mea culpa: tive de praticar o número 1 e 2 à sombra de frondosa árvore, enquanto  alguns quero-queros empoleirados nas cercanias me olhavam com cara de pouquíssimos amigos. Numa palavra: horror.

Essas ocorrências também se deram por motivos menos defensáveis: excesso de álcool no organismo, por exemplo. Nos orgíacos carnavais da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980, quando esses toscos-banheiros-químicos-de-hoje-em- dia sequer haviam sido inventados, mijávamos encostados em qualquer superfície sólida, ou mezzo sólida - que podia ser a murada fétida que dava para a Ladeira da Montanha, o pedestal da estátua de Castro Alves, ou a perna amiga do namorado/namorada, ou de algum desconhecido solidário.

Voltei a cometer esse, digamos, nefando pecado, no final dos anos 1980, em Barcelona, Espanha. Estava sozinho, e absolutamente inebriado pelo fato de conhecer uma das cidades mais encantadoras do mundo. Logo, excitadíssimo. Logo, louco de vontade de viver como se não houvesse amanhã. Alta madrugada, saí, siderado, de certo ecumênico bar no qual todos os gatos e gatas pareciam, e eram, pardas, e na qual tomei todas, e mais algumas. Ato contínuo: caí de boca numa estonteante e deslumbrante madrugada, na qual entrava rambla, saía rambla, deslumbrado, me sentindo o rei dos animais.

Tão rei dos animais que, ao olhar para todos os lados e não avistar viva alma (apenas a beleza estonteante da zona central da capital catalã), abri a braguilha, ziguezagueei sem rumo,  e serpenteei as calçadas barcelonesas com o meu nada precioso líquido. (Ok, algum leitor mais impiedoso poderá querer enfiar-me em alguma câmara de gás; e o que posso alegar em minha defesa é: 1. ainda muito jovem, acreditava, erradamente,  que o mundo me pertencia; 2. apropiando-me de algum freudismo de mesa de bar, poderia argumentar que eu era brasileiro pobre e fodido  que, de maneira infantiloide, tentava me afirrmar, enlameando, sujando, marcando (tal & qual  gatos e cachorros marcam seus territórios) o solo espanhol.

Sou, não duvide, caro leitor, a favor de multas e de prisões para esses porcalhões,  que, outra vez por vias tortas, nos fazem lembrar que somos tão animais quanto quaisquer outros animais. Ok, inventamos a penicilina, o rádio, a bomba atômica, a dinamite,  o facebook, mas na hora H, quando a bexiga e o intestino bimbalham freneticamente, percebemos: somos todos iguais nesta noite escura.
Tomara 1: que essa discussão necessária, mas quase lúdica, sobre mijar ou não nas nossas vias públicas, nos ocupe os corações e as mentes por mais e mais carnavais, e não carnavais. Tomara 2: que o Rio de Janeiro não volte a viver em clima de guerra civil, na qual mergulha há algumas décadas, e que mijar e cagar em via pública se torne o único crime praticado por estas plagas.
Tomara 2: que meus queridos e amados sobrinhos-netos e sobrinhos-bisnetos-por-virem, em algum lugar do futuro, voltem a viver em sociedade na qual a vida humana valha mais que um naco de crack, ou um grama de cocaína. Enfim: em mundo no qual seres humanos não se esfaqueiem e não se destruam com a mesma naturalidade com que comerão pizzas-sintéticas e sucos-de-frutas-idem.
Quero muito menos ainda que meus sobrinhos-netos e sobrinhos-bisnetos-por-virem sintam saudades do começo do século 21. Não desejo que, nas barbas do século 22, num rasgo de romantismo, Pietro, Dmitri, Beatriz, Augusto, Marvin, Davi, e os outros dois sobrinhos-netos-gêmeos que estão a caminho, olhem para o passado com nostalgia e saudade - e contem para seus netos e bisnetos algo assim: ´Era uma vez um tempo em que os cariocas eram quase felizes, e a única coisa que os entristecia e os aterrorizava era o fato de algumas pessoas fazerem xixi e cocô nas ruas´ .
(Momento da fábula futurista sugerida no título desta crônica: nesse hipotético  começo do século 22, os netos dos meus sobrinhos-netos deverão rir amarelo desse tempo dantanho, que, ainda bem, não mais voltará. E, nesse tempo que ninguém mais fará xixi nas ruas, tentarão esquecer o fato de então habitarem mundo no qual não existirão mais becos, muros e vielas, e, por tabela, não mais haverá gentes que mijem e caguem nas ruas.
Então, começo do século 22, todos os brasileiros (os que sobrarem da série de tsunamis devastadores, provocada pela apocalíptica erupção do vulcão Cumbre Vieja, nas Ilhas Canárias em 2054, e que, finalmente fez o mar chegar até Minas Gerais e aos altos sertões nordestinos)  habitarão às margens de uma Brasília apenas parcialmente devastada. Tentarão viver, em habitações verticais coletivas, da melhor maneira possível:  a água potável sumirá do planeta e, então a urina (aquela mesma desperdiçada pelos seres humanos no século anterior) será misturada a produto químico inventado por garoto-prodígio-goiano, e que a transformará, em questão de segundos, em água potável.
Terão água potável gerada a partir da urina em quantidade suficiente, mas viverão no osso. Nao terão a hoje vital luz elétrica. Nem tevês cabo. Smartphones. Ipods. Ipads. Tablets. Skypes. Facebooks. Fashionweeks. (Ir)reality shows. E-mails. Nem toda essa quinquilharia midiática que hoje mais nos afasta do que nos une - o sertão que virou mar engolirá tudo.

Os netos dos nossos netos e sobrinhos-netos serão (ou tentarão ser) felizes de maneira sbolutamente minimalista. Investirão nos afetos. Visitar-se-ão todas as noites. Trocarão irmamente os mantimentos que sobreviverem à hecatombe tsunâmica. Conversarão sobre a vida alheia ao redor de fogueiras.

Pensando bem, não sera um futuro assim tão completamente infeliz).



quinta-feira, 3 de março de 2011

A PRAÇA CASTRO ALVES FOI NOTÁVEL INVENÇÃO DO DIABO QUE DEUS ABENÇOOU

Tinha algo em torno de vinte & poucos anos, e a seguinte, e temerária, ideia na cabeça (plano de jerico, pode-se hoje facilmente deduzir; mas, aos vinte & poucos  anos,  nossa diferença dos jericos, em alguns casos, e esse era o meu caso, é quase imperceptível): com copo de cerveja numa mão e quatro ou cinco bolachas cream crakers na outra, atravessar o mais cego nó do carnaval de Salvador, nos idos dos anos 1970-1980 - a  praça do Relógio de São Pedro. Objetivo final: chegar,  superlépido e superfagueiro, ao epicentro musical, lisérgico, e iconoclástico da folia baiana à época: a (libertadora) Praça Castro Alves.

Detalhes que não deverei ocultar, caro leitor: 1) essa travessia foi feita após ter me afogado em mistura alcoólica pontuada por cerveja, vodca e uísque; cheirado algumas fileiras de cocaína e esfregado mais certa quantidade nas gengivas; fumado alguns cigarros de maconha. 2) esse mais cego nó do carnaval de Salvador de antanho era estreito corredor, espécie de antessala do possível-simulacro-do-céu que viria a seguir, e que, como tal, era mix de inferno e purgatório; numa área pequena (de talvez 200 metros quadrados), e sem nenhuma saída visível a olho nu, milhares de pessoas empurravam-se, apalpavam-se, mergulhavam em libidinoso esfrega-esfrega, o que implicava avanços apenas milimétricos, e resultava em cenas de violência explícita inolvidáveis.

Não era raro nos anos 1970-1980 que, nesse, digamos, corredor-da-morte-momesco algumas dezenas de pessoas sucumbissem: asfixiadas; pisoteadas; baleadas;  esfaqueadas; trituradas; fulminadas por variantes homicidas de idêntico calibre. Pois bem: foi mais ou menos às sete da noite (exatamente o horário mais perigoso para atravessá-lo; no epicentro desse terremoto dionisíaco) que eu, meu copo de cerveja, minhas quatro ou cinco bolachas cream crackers, e mais dois ou três amigos mergulhamos de cabeça, tronco e membros nessa multidão-areia-movediça.

Hosana nas alturas: sobrevivemos todos, e chegamos inteiros, sãos e salvos, sem mácula sequer nos nossos corpos e nas nossas mortalhas - era época pré-abadás, na qual escondíamos nossos corpos em largos pedaços de panos coloridos batizados com esse emblemático epíteto. Ao chegarmos no fim da ladeira de São Bento, nas barbas da Praça Castro Alves, e avistarmos, enfim, a multidão em transe que, com ou sem trios elétricos, esbaldava-se sem pejo algum. se beijava com sofreguidão, trocava carícias dos mais variados calibres, e se afundava em todas as drogas ao alcance das mãos e das bocas, comi as quatro ou cinco bolachas cream crackers sobreviventes, bebi o copo de cerveja já ligeiramente quente, e beijei na boca os meus três amigos (ou seriam amigas? Who cares?)

O ponto final desse simulacro de odisséia dionisíaca, a praça-Castro-Alves-dos-carnavais-baianos-dos-anos-1970-1980 era a mais completa, e bem-vinda,  materialização de Sodoma e Gomorra que o planeta Terra conseguiu configurar na segunda metade do século 20 neste lado de baixo do Equador.  A Aids ainda não havia aberto suas asas nefastas sobre nós, e podíamos ser de todo o mundo, pertencer a todo o mundo, e, ao mesmo tempo, não sermos de ninguém, e não pertencermos a ninguém. A prática ainda em voga de separar o mundo entre homens & mulheres, gays & héteros esfarelava-se definitivamente - e eregíamos  templo ao ar livre no qual mandávamos preconceitos sexuais e morais para, perdão leitor, a puta que os pariu.

Nutria esse desvario sexual e comportamental a nossa irrefreável vontade de nos livrarmos para todo o sempre de trastes assim: 1) famílias amorosas, mas castradoras, mas limitadoras, mas repressoras, que reproduziam mecanicamente a moral ortodoxa católica, e que tentavam nos enfiar goela abaixo que sexo era algo sujo que só conseguia adquirir algum grau de limpeza quando o praticávamos para procriar, no pouco criativo estilo papai-mamãe; 2) grupos esquerdoides que babavam nas gravatas e, basicamente, nas cuecas imundas de crápulas do naípe de Stálin, Lênin, Fidel Castro, Mao Tsé Tung et caterva, e que que acabaram se transformando no lado B, na banda podre, de nossas famílias.

Minha querida mãe, a amadíssima e amantíssima senhora Águida Menezes, que Deus, ou quem de direito, a tenha em bom lugar, nunca me proibiu pular carnaval. Enquanto isso, na calada da noite, o grupo de esquerda ortodoxa ao qual me filiara nos meus tenros 18 anos, me colocara na parede. Chamara-me para conversar, e proferir severa preleção (e isso me motivou, entre outras aberrações que não vêm ao caso, a mandá-los à merda alguns anos depois; dezenas de amigos também agiram dessa forma e pularam fora dessa nau sem rumo). A preleção era a seguinte: - O carnaval é festa burguesa, portanto proibida.  Achamos mais adequado que o companheiro fique em casa, em segurança, lendo algum livro sobre materialismo dialético.

Intuía que devia mandar esse companheiro de partido enfiar esse materialismo dialético naquele lugar, mas contive-me. A boa notícia: de certa forma me vinguei: não li nenhuma obra sobre ditadura do proletariado.  Preferi mergulhar nos escurinhos dos cinemas do centro de Salvador, e ver filmes, muito filmes - e, se não me falha a memória, aproveitei a oportunidade para protagonizar algumas cenas de sexo fortuito entre cena e outra de algum filme de Michelangelo Antonioni,  ou de Luis Buñuel.

Ou seja: em meados dos anos 1970, vivíamos entre a cruz e a espada. Corríamos, mas o bicho nos pegava: tentávamos escapar da familia repressora e caíamos em garras ainda mais afiadas e pérfidas, e nos chafurdávamos em grupelhos de esquerda mais obscuros ainda.

Quem quiser que conte outra, mas, para mim, foram os seguintes ingredientes que fizeram germinar e borbulhar aquela absolutamente libertadora Praça Castro Alves dos anos 1970-1980:
1) A necessidade vital de nos desgarrarmos das asas superprotetoras de nossas famílias (que nos amavam profundamente, mas que também nos tolhiam profundamente).
2) O desejo igualmente vital de nos de nos desalinharmos de certa esquerda ortodoxa que nos cooptou assim que nos livramos das asas protetoras dos nossos pais, e que, com sectarismo notável, nos fez sentir saudades das asas protetoras de nossos pais.
3) O mundo ao redor cada vez mais libertário, anárquico, lisérgico, liberal, iconoclasta, no qual pontificavam, entre muitos outros, heróis libertários do naipe de Elvis Presley, Little Richard, Mick Jagger, Janis Joplin (lá fora), e (aqui no Brasil)  os Dzi Croquetes, Nei Matogrosso (andróginos fulltime) e Caetano Veloso (sim, o hoje senhorial Caetano Veloso já foi ícone do mau-mocismo libertário pátrio; ´gosto muito de te ver leãozinho´ pode ter ajudado a tirar muita gente do armário. (É sempre bom lembrar que foi ele, quem, inspirado em  pichações murais de Paris-maio-68, berrou a palavra de ordem de toda essa santa desordem dessa minha nada santa geração: é proibido proibir).

Proibido proibir se tornou o mais emblemático mantra da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980. Quanto mais iconoclastas fôssemos mais felizes seríamos, pensávamos – e fomos muito iconoclastas, e fomos muito felizes. Durante mais de uma década, limitados a leste pela estátua passiva do poeta Castro Alves (eventualmente sodomizada por bêbados mais exaltados), ao sul pelo Palácio dos Desportos, e a leste pelo então Cine Guarani (hoje Espaço Unibanco Glauber Rocha), a cobra fumava (maconha), bebia, e cheirava, e nós todos, solidários, a imitávamos.

A quantidade de fatos de natureza felliniana que presenciamos, e que protagonizamos, na Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 era estonteante. Tratava-se de espetáculo coletivo no qual éramos protagonistas e espectadores, palco e platéia, homens e mulheres, gays e heterossexuais. Nada parecia nos diferenciar - e, de fato, nada nos diferenciava.

Nessa praça Castro Alves em eterno transe, difícil lembrar esse ou aquele personagem que mereça destaque (éramos todos destaques; a ideia era exatamente essa: sermos completamente livres de todas as caretices vigentes, e ocuparmos espaços e mostrarmos o que realmente éramos, sem familiares ou esquerdoides a nos torrar a paciência). Mas talvez eu, perene e incansável testemunha ocular dessa história, possa citar, noblesse oblige, o nome de certo personagem argentino que pairou sobre Salvador, em geral, e pela Praça Castro Alves, em particular nesse período de tons fortemente dionisíacos.

Chamava-se Fernando Noy (e talvez ainda se chame; há informações extra-oficiais de que ele sobreviveu ao tsunami que nos abateu a partir dos anos 1990, e continua vivo e forte em Buenos Aires). Foi predecessor do que podemos chamar homem-mulher-evento (mercadoria barata hoje em dia, quando mulheres-frutas dão o tom e se vendem a preço de xepa Brasil afora).

Em coluna que escrevia à época em jornal de Salvador, o Correio da Bahia, alcunhei-o de ´pomba-gira portenha´. Tornamo-nos amigos, os amigos possíveis. Mesmo nos meus anos loucos, era difícil ser amigo de figura tão extraordinariamente frenética e tão extraordinariamente heterodoxa. Lembro de certa tarde de domingo de carnaval na qual ele ligou da portaria do prédio onde eu então morava, na Ladeira da Fonte, no Campo Grande. Estava aos prantos, e berrava, num portunhol muito peculiar: - Rorélio, Rorélio, querido, acuda-me! Abandornaram-me. Mis hombres mi abandonaram. Estoy solita e desesperançada. Tu me consolas, cariño?

Ainda emergia de farra monumental do dia anterior, e tive de ser cruel: fingi-me de surdo. Desliguei o interfone, tranquei-me no quarto, e voltei a dormir. Com alguma culpa, admito. Mas o sono matou a culpa, e não pude (nem quis) resolver o problema afetivo da ´pomba-gira portenha´.

Mas a ´pomba-gira portenha´sobreviveu, e sobreviveu galhardamente. No dia seguinte, ao cair da tarde,  - quando gays do Brasil inteiro se empoleiravam na escadaria do Palácio dos Desportos, numa espécie de desfile em free style  (todas, montadíssimas, inventavam formas criativas de atrair a multidão que se esgoelava pelas cercanias) - eu avistei Fernando Noy.

Sendo mais exato: eu avistei a bunda flácida, branca e gorda de Fernando Noy resplandecer magnificamente sob o sol (já pálido do final de tarde) do novo mundo.

Usando de certa força física (ele não era exatamente longilíneo, ou fracote), conseguiu ocupar o espaço central da escadaria. Em seguida,  rodopiou feito perua bêbada, a bordo de longo e amplo traje de vaga inspiração inca em tons multicores. De repente, não mais que de repente, deu as costas para a platéia e exibiu as alvíssimas nádegas barrocas. Resultado: delírio e frenesi totais entre a plateia-multidão alucinada, e que se alucinava ainda mais por causa da chegada de trio elétrico comandado pela hiper-mega-super-alucinantemente-louca-Baby Consuelo despontando no finalzinho da Rua Chile.

Perdão, homens e mulheres que beijei sem sequer saber-lhes os nomes; perdão, parceiros de cenas de sexo fortuito ou nao fortuito; perdão, amigos que me enfiaram pontos de ácido goela abaixo, ou que surgiram do nada e me oferecaim ´baseados´ salvadores; perdão, inesquecíveis e viscerais Babys Consuelos, Caetanos Velosos, e Morais Moreiras que balançaram o chão da praça e e me fizeram crer que o céu, se existisse, era ali e naquela hora.

Mas devo admitir, caro leitor: minha lembrança mais arrebatadora e imorredoura da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 é exatamente essa ´pomba-gira portenha´ intitulada Fernando Noy. Mais exatamente no momento em que ele/ela rodopia no alto da escadaria do Palácio dos Desportos tal e qual uma perua bêbada e drogada, e escancara para a multidão em transe a enorme bunda branca, flácida, e gorda.

Perdão pelo sacrilégio (mas podemos, e devemos, ser sacrílegos em períodos carnavalescos): - Deus salve a bunda branca, flácida e gorda de Fernando Noy.