sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O MEU-FERIDO-DIÁRIO DA GAROTA SEVERINE DUBOIS

Tenho o dever cívico, e literário, de lhe informar, caro leitor: a jovem escritora Severine Dubois existiu.

A poucos dias de completar 19 anos, Severine Dubois (nome descaradamente fictício) enfiou goela abaixo miríades de antidepressivos, e, sem choro nem vela, se matou. Detalhe: escrevia de maneira apaixonada e arrebatadora.

(O que nos unira foi exatamente o interesse que nutrimos pela literatura. Eu a conhecera havia  pouco mais de um mês em evento literário do qual participamos. Trocávamos e-mails. Dividíamos algumas confidências. Tecíamos opiniões sobre bons romances. Ela gostava de saber minha opinião a respeito do que escrevia no blog que mantinha e em textos manuscritos que generosamente me repassava. Eu adorava descobrir garota de 18 anos que sabia o que eram mesóclises, e, melhor, usava-as).

Severine Dubois tinha maneira visceral de escrever que me encantou, e me  fez crer: presenciava o despertar de grande escritora. Certo final de tarde de outono, entre café-expresso e outro, em discreto bar-restaurante encravado em galeria pouco solar da zona sul do Rio de Janeiro, disse-lhe: - Se continuar a escrever dessa maneira, ao chegar aos 50, estará escrevendo com a visceralidade de Clarice Lispector.

Olhou-me com certo espanto; pensei que fosse me perguntar que porra significava exatamente visceralidade. Mas o que ouvi foi desconcertante e inusitado diagnóstico literário - Clarice Lispector não tem visceralidade alguma. Nos textos dela tudo me soa falso. Não gosto do que essa mulher escreve!

Em certa noite insone, e insana, recebi e-mail que me avisava do suicídio de Severine Dubois. Devastei-me. Afundei-me em caraminholas nas quais me chafurdava nas seguintes questões: 1) Por que diabos Severine Dubois teria surgido na minha vida àquela altura do campeonato? 2) Por que eu e ela criamos certa cumplicidade literária que durou apenas pouco mais de um mês? 3) Por que não conseguira fazer com que Severine D. cresse que, aos 18 anos, a vida sempre valerá a pena?

Nenhuma dessas questões respondidas (e não o foram até hoje), lembrei-me do blog que Severine Dubois escrevia. Nele postava diuturnamente as diatribes existenciais e afetivas de garota recém-saida da adolescência - escritas num grau de profundidade poética, humana e existencial que me espantava, e que me encantava, e que me arrebatava. Acessei-o. Então li:

Testamento:  Quero ser cremada. Quero que meus órgãos sejam doados. Quero que minha casa fique para  T., meu único e grande amor... Meus livros e tudo que eu tiver são para T. Porque, se não fosse para morrer, a única coisa que eu queria era passar o resto da vida ao lado de T. Peço que não fiquem tristes.  Fiquem felizes porque a dor que me corrói vai passar. Baby, eu te amo. Amo com toda minha alma... Peço-te que escreva minha história e publique-a com meus textos. Por favor. Só você sabe quem eu sou. Você foi a única pessoa que me viu. A única que quis correr o risco. A única que não me deixou morrer... Não sou capaz de te ver sendo feliz com outra pessoa, por isso me vou... Eu queria ter mais a dizer, mas não tenho. Não vou dizer adeus aqui para ninguém. Não vou pedir desculpas... Nunca fui boa em perdoar. Infelizmente, não perdoei ninguém. E nunca vou perdoar.´´

Li outros posts do blog de Severine Dubois. Concentrei-me então num texto que lhe sugeri que escrevesse. Em outra conversa naquele bar-restaurante encravado numa galeria pouco solar da zona sul do Rio de Janeiro, disse-lhe: ela escrevia muito bem, mas escrevia sempre sobre si mesma. Propus-lhe outro olhar: por que não escrever, também,  sobre os outros? Imaginei-lhe o seguinte plot: prostituta de rua que enfrenta inesperada tempestade tropical em noite quente de verão.

Alguns dias depois, Severine Dubois me apresentou texto, do qual destaco aqui o  trecho: ´´ Chuva magnânima: cega, assusta, maltrata. Braço direito da solidão, isso sim... Sou sempre a segunda opção: boneca sem sentimentos, queridinha do papai, aluna obediente. Devo seguir o roteiro e tenho infinitas possibilidades, exceto ser eu mesma. A chuva quer apagar o meu eu. Espero que consiga. Escolhi o trabalho errado. Comecei achando que ser prostituta me faria gostada, amparada, visível. Como pude ser tão ingênua? Hoje ando pelas ruas vazias, procurando qualquer ser vivo que me queira. Meu batom vermelho está borrado e grossas lágrimas de rímel escorrem pelo meu rosto. Não sei se são lágrimas, ou simplesmente chuva. Ao contrário desta tempestade, estou seca por dentro...  A chuva varreu minhas esperanças. Ensopada dos pés à cabeça, rezando para que um raio me atinja, ando à toa. Vultos me perseguem; demônios correm atrás de mim; fogos-fátuos confundem minha sanidade. Decido-me por voltar para casa e fazer o que faço melhor: ser invisível. Com, ou sem chuva."

Varei essa madrugada relendo os posts do blog de Severine Dubois. Repeti o mesmo ritual outras tantas madrugadas, e nessas tantas madrugadas aquele mantra inquiridor se repetia ad nauseam na minha cabeça: o que fazer com esse, digamos, meu-ferido-diário-virtual de uma garota interrompida que poderia se tornar grande escritora, mas preferiu sair de campo aos 18 minutos e 50 segundos do primeiro tempo?

Fiquei muitos meses sem ler o meu-ferido-diário-virtual de Severine Dubois. Até que anteontem à noite, ensopado pelo suor e, principalmente, pelo tédio deste absolutamente insuportável calor carioca, acessei-lhe novamente o blog. Reli tudo outra vez. Ao voltar no tempo e chegar à primeira postagem, publicada dois meses antes de ela se matar, decidi: escreveria esta crônica, com a intenção expressa de dar alguma voz a parte dessa prosa literária que talvez nunca venha à luz.

No primeiro post desse meu-ferido-diário-virtual Severine Dubois brada: ´´Desvendar-me-ei aos pouquinhos. Falo de fatos e as pessoas se chocam, sentem pena, e dizem que sentem muito. Mas e daí? É muito triste, não é? Mas e daí, quem se importa? Por isso vou procurar falar apenas de sentimentos, os fatos que vão para o inferno.´´

(Dizer mais o quê? Os mortos falam por nós, não falam?)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

DONA ILAIR E SEUS TRÊS QUERIDOS E AMADOS CACHORROS

Verdade que não me empapucei  do caudaloso, sem trocadilhos, noticiário sobre as enchentes que mataram centenas de pessoas esta semana no interior do Rio de Janeiro,  e que deixaram jornais e canais de tevê numa espécie de transe catártico. Poupei-me da náusea (vejo cenas assim desde que me entendo por gente, ainda petiz, no começo dos anos 1960, em Jequié-Bahia, quando o Rio de Contas, que corta a cidade, invadia casas que o margeiam com fúria colossal e devastadora, e ceifava a vida de muitas gentes) .
Outro exercício de arqueologia afetiva pessoal: as primeiras imagens jornalísticas que vi - (ainda registradas em gigantescas fotografias em preto e branco que ocupavam páginas inteiras da revista O Cruzeiro, nas quais praticamente aprendi a ler e nas quais absorvi os meus primeiros eflúvios jornalísticos) - foram de enchentes devastadoras que matavam centenas de pessoas no Rio de Janeiro. 
Em síntese: trata-se, para mim e para milhões de brasileiros que tenham alguma, digamos, memória trágica, de quase monótono dèja-vu , que se repete ad infinitum e ad nauseam.
Ainda assim, econômico na contemplação masoquista dessa tragédia, acabei captando sobras dos noticiários que eventualmente tentei  escapar. Alcançavam-me nos botecos das esquinas do Baixo Botafogo por onde passava, nos quais televisões eternamente ligadas me arreganhavam as cenas que me poupei de ver na tevê de casa. Ou, ainda, entre zaping e outro, nos intervalos nos quais buscava desesperadamente algo menos desesperador para assistir ao vivo e a cores: a nossa imorredoura capacidade de, perdão leitores, fazermos merda, de cavarmos a nossa própria sepultura, de nos inviabilizarmos cada vez mais como o único ser vivo que se diz racional - como nos jactamos de ser. 
(Ok, alguém poderá dizer, com mais ingenuidade do que razão: trata-se de retumbante tragédia, e tragédias serão sempre inevitáveis.  É. Pode ser. Mas os meus botões, e alguns botões alheios, vivem me infernizando com o seguinte mantra: estamos-nos-inviablizando-cada-vez-mais-como-o-rei-dos-animais. E, temo, eles estão cobertos de razão).
Talvez esse raciocínio nada, digamos, edificante, tenha me ajudado a entender a seguinte ocorrência pessoal: do pouco que vi dos noticiários das tevês e dos jornais  foi certa sequência de imagens dramáticas protagonizadas por dona Ilair Pereira de Souza, de São José do Vale do Rio Preto, o que realmente me emocionou profundamente. Flagrava mulher desesperada, entre a vida e a morte, que, no meio de correnteza que ameaçava levar de roldão a casa de alvenaria na qual morava, tentava desesperadamente salvar o vira-lata de estimação:  um tal Beethoven.
As imagens, que revi há pouco no Youtube antes de escrever este texto, e que voltaram a me emocionar, evidenciam:  dona Ilair não decidiu quem continuaria vivo – se ela ou Beethoven.  Alguma, digamos, instância superior decidiu por ela, e uma correnteza mais forte, deus-ex-machina terrível, arrancou-lhe o querido vira-lata dos braços e o arrebatou para todo o sempre (Havia outros dois cães ao lado da nossa heroína trágica até a vigésima-quinta hora, não identificados por nossas folhas, e igualmente arrebatados pelas águas). 
Lamentei essa pequena grande tragédia, no meio de outras tanta alegadamente maiores, pelo seguinte fato: essa ocorrência vitimou criaturas (além de Beethoven e seus dois amigos, certamente centenas de animais foram levados pelas águas) que, até prova em contrário, não tinham nada a ver com essa, perdão de novo leitores, merda toda que os seres humanos estamos fazendo desde sempre e, creio piamente, faremos até o fim dos tempos.
Cachorros, gatos, e outros animais ditos irracionais, são incapazes de agir como nós seres humanos costumamos agir. (Nunca esquecerei pichação que vi nos muros de Salvador em algum lugar do passado: Por um mundo menos humano). Animais ditos irracionais não traem. Não constroem casas onde não devem,  em nome da especulação imobiliária e da sede inesgotável de ganhar mais e mais dinheiro. Não cometem crimes com o mesmo ímpeto com que devoram feijoadas completas. Não se tornam políticos que, em campanha, prometem mundos e fundos para amenizar a miséria humana, e, quando eleitos, sentam a bunda nos tronos, e, ali abancados,  mamam nas tetas do poder para todo o sempre.  Não se deixam levar a sério e crêem que são a glória da raça. Não... etc, etc, etc.
Minha emoção profunda adveio da minha convicção de que os animais ditos irracionais não têm nada a ver com essa história sórdida e abjeta. (Ok, muitas crianças morreram nessa tragédia, e crianças também não têm nada a ver com essa história sórdida e abjeta; não ainda; mas, para o bem e para o mal, crianças crescem e nem todas as crianças se tornam adultos menos capazes de fazer merda diuturnamente). 
Certamente fato acontecido no dia anterior à eclosão dessa tragédia ocorrida no Rio de Janeiro seria decisivo para explicar essa minha emoção profunda ao ver os cães de Dona Ilair sendo tragados pela correnteza das enchentes. Em Brasília, ao pegar o elevador e descer para pegar o táxi que me levaria ao aeroporto, olhei para a porta do apartamento do amigo querido que me hospedara:  o olhar desse amigo querido era amistoso e algo saudoso. Nesse olhar podia-se ler a seguinte mensagem: sentiria a minha falta, mas sabia, sensatamente, que eu tinha de voltar para a casa onde moro no Rio de Janeiro e seguir o rumo que a vida me reservaria.
Mas o golden retriever Martim, atualmente um dos meus amigos mais queridos e amados, em Brasília e alhures, a mensagem que se podia ler no olhar que me dirigia não era exatamente a mesma. Ostentava olhar devastado pela tristeza. Parecia inferir que não ia me ter mais afagando-lhe o pescoço macio e as orelhas felpudas como sempre faço quando lhe estou ao lado. Parecia inferir também que nunca mais voltaria a me ver – e isso lhe doía profundamente - e isso lhe colava no rosto plácido e belo um pathos de dor sincera que poucas vezes vi em rostos dos seres humanos ditos racionais.
Cada vez mais creio que os animais ditos irracionais nos tornam menos humanos, e isso pode fazer toda a diferença: nos tornar seres que pensemos duas vezes antes de trairmos; de construirmos casas onde não devemos; de cometermos crimes com o mesmo ímpeto com que devoramos feijoadas completas; etc, etc, etc. 
Não pude deixar de deduzir: quando o cão Beethoven se soltou dos braços protetores de dona Iliair (uma, felizmente, mulher cada vez menos humana), e se deixou levar pelas águas turvas da enxurrada, tive a nítida e seguinte sensação: a de que o mundo ficara um pouquinho menos habitável. 
Sempre que posso faço aquele exercício mental algo banal que não leva a nada, mas que, de alguma forma, revela a amplidão de nossas solidões. Qual seja: se numa situação similar à vivida por dona Ilair Pereira de Souza, quem tentaríamos desesperadamente salvar das garras da morte? Não penso mais de dez segundos para chegar aos meus eleitos; dez a quinze pessoas, e, claro, o meu querido e amado golden retriever Martin.




  

  



sábado, 8 de janeiro de 2011

DONA TOINHA E SEUS DOIS PRESIDENTES

Neste exato momento em que o caro  leitor me dá o prazer de sua companhia, o homem (ou a mulher) de sua vida (ou de sua morte) poderá estar protagonizando alguma banal atividade física, fisiológica, mental, extrassensorial  (ou seja lá que diabo for)  em algum  lugar do planeta Terra.  (Sincrônica. Universos paralelos em epifania. Assim é a vida. Sempre foi. Sempre será. Tudo ao mesmo tempo agora - embora sejamos incapazes de vislumbrar a olho nu o tudo ao mesmo tempo agora a que estamos submetidos de maneira vital e inexorável).
Ou ainda 1:  como diziam os antigos, da missa não sabemos sequer a metade.
Ou ainda 2:  a vida é grande e indecifrável mistério sem sentido (apud Eclesiastes).
Mas deixemos de firulas, e vamos aos fatos:  
14 de julho de 1938: Enquanto um garoto (mezzo) branco de 7 anos chamado Fernando brinca no quintal de casa confortável de família bem nascida da zona sul do Rio de Janeiro, nasce,  na pequena Conceição do Mato Dentro, perto de Belo Horizonte,  Minas Gerais, pequerrucha e pobre garota negra  à qual batizaram Maria Antonia.
27 de outubro de 1945: Enquanto uma garota de 7 anos chamada Maria Antonia  brinca no quintal de alguma casa nem tão confortável assim de família nem tão bem nascida assim de Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais,  nasce em Caetés, no agreste pernambucano,  um   pequerrucho e pobre garoto (mezzo) branco ao qual batizaram Luiz.
(Enquanto isso o então adolescente Fernando, já morando em São Paulo,  sequer imagina  que a mineira Maria Antonia e o pernambucano Luiz possam existir em vidas paralelas).
2 de janeiro de 2011: É domingo chuvoso, e vamos almoçar em Sobradinho, cidade satélite de Brasília. O lugar: casa (própria) sem luxos,  mas confortável, do Conjunto C4 . Nesse locai mora amiga muito querida desde os anos 1990: a hoje senhora de 72 anos Maria Antonia (de Amorim). Está casada desde 1964 com o motorista de ônibus,  hoje aposentado, Antonio (de Amorim), 79. É mãe de três guapos homenzarrões: Renato, 45, Rogério, 44, e Ricardo, 34. É avó de dois guapos netos:  Giovanna, 10, e Samuel, 2.  
Após o delicioso almoço feito pela anfitriã, sentamo-nos na sala, onde:
1) Saboreamos deliciosa sobremesa: ´Desculpe,  Rogério, o pudim  passou do ponto,   ficou solado , mas, mesmo assim,  a minha neta comeu quase todo com amiguinha dela aqui da rua.´   (Devo dizer:  foi o melhor pudim solado que já comi em toda a minha longa existência).
2) Jogamos conversa fora sobre coisas da (nossa) vida. Por exemplo:  Dona Toinha, como carinhosamente a chamamos,  relembra que chegou a Brasília na época da inauguração da nova capital federal; relembra também que desde então não parou mais de trabalhar como (ótima) quituteira. 
3) Revemos  fotografias,  como as que ilustram esta crônica,  que revelam como estamos e como somos eternamente submetidos às tramóias misteriosas do destino, e que eventualmente podem juntar numa mesma cena e num mesmo espaço elencos improváveis, como a mineira Maria Antonia (Amorim), o carioca Fernando ( Henrique Cardoso) e o pernambucano Luiz  (Inácio Lula da Silva).
Resumo dessa ópera edificante, caro leitor:  quituteira de mão cheia (´Sempre mexi com comida, Rogério, sempre!), Dona Toinha acaba trabalhando durante anos na casa do mais emblemático colunista social de Brasília: Gilberto Amaral. Até que, honra ao mérito,  surge o convite, nos idos dos anos 1990, para  fazer parte da equipe de craques que cuidam da copa e da cozinha do Palácio da Alvorada, a residência oficial dos presidentes da república federativa do Brasil.
Essa peripécia dramática de tons clássicos muda o rumo da trama:  torna possível que, no geral,  a humilde Dona Toinha  trave alguma intimidade com os meandros do poder; e que, em particular, possa conhecer os últimos dois presidentes da república com razoável intimidade - principalmente em relação a assuntos gastronômicos. Mas, discreta, ela, nessa conversa dominical pós-almoço,  tergiversa, e omite, com parcimônia mineira, eventuais excessos de gula cometidos por Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva que possa ter presenciado.
Diante de certa insistência do cronista, Dona Toinha ri um sorriso cândido e concede, econômica, alguma informação: - O FHC era muito discreto. Era incapaz de reclamar da qualidade da comida que a gente fazia. Sempre achava tudo ótimo. Já o Lula era diferente. Quando gostava, dizia. Mas quando não gostava  também fazia questão de deixar bem claro que não tinha gostado.
Aviso aos navegantes: esta crônica não tem intenção alguma de revelar segredinhos gastronômicos de ex-presidentes. Pretende, sim, exaltar gentes como Maria Antonia de Amorim, que vieram do nada, que tinham quase tudo para darem errado, mas, de alguma forma, mudaram as regras do jogo.
(Ok, a vida pode não ter o menor sentido, mas conhecer donas-toinhas assim pode ser bem mais salutar que doses diárias de Rivotril enfiadas goela abaixo).
PS: Maria Antonia de Amorim se aposentou aos 70 anos, em 2008, e atualmente cozinha apenas para a família e os amigos.

sábado, 1 de janeiro de 2011

TEMPESTADE, LAMA, E UMA PERGUNTA: O QUE DONA DILMA TEM QUE NÓS NÃO TEMOS?

O mendigo alheava-se de tudo (parecia não ter a mais remota idéia de para onde iam todas aquelas pessoas que passavam apressadas - e que não lhe prestavam a mínima atenção). Tentava abrigar-se em  caixas molhadas de papelão sob o viaduto da Rodoviária de Brasília. Ele quase me tirou do prumo: que trapaças da sorte levaram aquele pobre diabo àquela situação-limite?

Mas eu também tive de ignorá-lo, e de esquecê-lo. Na verdade o que o meu cérebro queria realmente processar naquele exato momento era a seguinte e complexa equação:
X: em 1 de janeiro de 2001 99,99% dos brasileiros jamais tinham ouvido falar de certa senhora, então cinquentona, chamada Dilma Vana Rousseff;
Y: há um decênio essa senhora, então cinquentona, poderia adentrar qualquer lugar público de qualquer lugar do país sem que ninguém se desse ao trabalho de contemplá-la, ou, sequer, de percebê-la;
Z: nesta tarde brasiliense chuvosa essa senhora, agora sessentona, tomava posse como a primeira mulher presidente da república federativa do Brasil.

Antes que minha cabeça desse tilt fatal na tentativa vã de decifrar essa complexa equação, me agreguei sem pejo à massa humana que invadia a Esplanada dos Ministérios - e me deixei levar - e me deixei arrastar. Ao olharmos para trás,  eu e a pequena grande multidão da qual fazia parte percebemos: 1. nuvens ameaçadoras despontavam colossais, a boreste.  2. o Rolls Royce presidencial preto, que transportava a nova presidenta da República Federativa do Brasil Dilma Roussef, & filha, despontava, colossal, a boreste.

O Rolls Royce presidencial preto passou velozmente - e apenas os mais rápidos no gatilho puderam flagrar uma Dilma Rouseff (visivelmente esculpida pela colossal obra de engenheria política a que se submeteu nos últimos tempos) acenar milimetricamente para nós, a plebe rude, que ululávamos às margens do cortejo presidencial.

A tempestade tropical de proporções bíblicas, no entanto, não passou velozmente. Ao contrário, perdurou; misturou-se a nós; imiscuiu-se no meio de nós; nos ensopou até os ossos nos quinze minutos seguintes; e encharcou o gramado rarefeito dos canteiros centrais da Esplanada dos Ministérios.

Às margens desse mar de chuva e de lama vicejaram os vendilhões de guarda-chuvas e de capinhas plásticas, magicamente alçadas à condição de joias da coroa. Impulsionadas pelo multissecular jogo da oferta e da procura, chegaram rapidamente a cotações hiperinflacionadas. 

(Tempestade. Lama. Hiperinflação. Haverá claro profetas que, a partir dessas sinalizações externas e inesperadas, imaginem bons ou maus augúrios para o recém-iniciado governo Dilma Rouseff. A ver.) 

Não paguei 15 contos  pela capinha plástica ordinária, ou 20 mirréis pelo guarda-chuva igualmente ordinário. Mas, admito, chafurdei na lama. Evidências: esfomeado, devorei cocada-branca-mais-doce-que-os-lábios-de-mel-de-Iracema que deve ter elevado a minha taxa de glicose a padrões estratosféricos e, para rebater, engoli dois sacos de pipoca salgada nas dezenas de barracas que pareciam sair do meio do nada. Ato seguinte: deixei-me afundar no mar de lama, literal, que nos conduzia ao Congresso Nacional  (lá, no gramado que cerca os dois  prédios, entre muitas poças de lama, formigas famélicas picavam súditos mais incautos - e lá esperamos, frenéticos, por mais de hora e meia para voltarmos a ver  a presidenta Dilma Roussef & filha, agora, tempestade apascentada, desfilarem em carro aberto no Rolls Royce presidencial preto).

Nesse burburinho, travei conversa com muitos súditos. Por exemplo: Dona Zefinha, pernambucana do Recife que mora no Distrito Federal desde 1971. Fã incondicional de Lula, ´ele vai voltar´, crê que ´essa muié´ poderá fazer ´um bom governo´. Inebriada com o que via (nunca assitira à nenhuma posse presidencial), me puxa pelo braço, quase íntima, e fala: - Se com Dilma está sendo essa festa toda, imagine se fosse o Nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa que tivesse (sic) subindo a rampa do palácio! (E não pude deixar de me perguntar: seria Luiz Inácio Lula da Silva o Nosso Senhor Jesus Cristo de Dona Zefinha?)

Fim de (minha) festa: despeço-me de dona Zefinha (e da filha dela, e do neto dela, e do genro dela);  passo pelas proximidades do Parlatório, no Palácio do Planalto, onde a presidenta Dilma Roussef faz discurso discreto e a militância petista faz claque algo insossa para os padrões do partido; e sigo de volta para a casa onde ora me hospedo em Brasília. Então aquela complexa equação exposta no primeiro parágrafo me volta à cabeça.  Ainda não consigo elucidá-la, mas a seguinte pergunta bombardeia os meus neurônios: o que Dilma Rousseff tem que eu, você, caro leitor, e o mendigo do primeiro parágrafo não temos?

Três respostas possíveis: a. sorte. b. santo protetor como Luiz Inácio Lula da Silva. c. algum talento em abraçar as oportunidades inesperadas que a vida nos oferece.