Cinquenta anos depois Brasília continua essa mesma (e adorável) cidade do outro planeta. Nada contra cidades que pareçam cidades de outro planeta. Ao contrário. Morei dez anos (entre 1998 e 2008; e morarei de novo, se preciso for) nesta cidade que parece cidade de outro planeta, e a qual procuro visitar sempre que quero rever lugares e pessoas queridos & sentimentos e estados d´alma que me são caros.
Hoje, manhã de domingo (estou novamente nesta capital federal), Brasília parecia mais do que nunca cidade do outro planeta: fazia 21 graus, apesar do verão ora em vigor no hemisfério sul, chovia moderadamente mas insistentemente, e o céu se escondia sob colossais nuvens de chumbo.
Peguei o guarda-chuva emprestado do amigo querido que ora me hospeda, pedi que me levasse de carro até a cabeceira norte do Eixão Rodoviário, e parti. (Andar de uma ponta a outra de Brasília, aos domingos e feriados, quando o trânsito de automóveis é proibido nessa longa via, é o mais elementar, e saudável, exercício de imersão nesta cidade que parece ser de outra planeta).
São 10h30 da manhã de domingo. Chove lá fora. Desço do carro. Despeço-me do meu amigo. Abro o guarda-chuva. Caminho poucos metros até o Eixão. Olho para a frente: até onde minha vista alcança não vejo vivalma. (Nas laterais: árvores frondosas; quadras verdejantes; blocos residenciais assépticos; e carros, muitos carros, que parecem caminhar sozinhos sem que nenhum ser humano os comande).
Ando sozinho por alguns minutos. De repente, percebo à minha frente, a algumas dezenas de metros de distância, um homem. Ele também caminha sozinho. Também usa guarda-chuva. Também veste bermuda preta estampada e camiseta azul, e calça tênis pretos. Apresso o passo. Chego-lhe mais perto. Caminhamos assim, próximos, sozinhos, por longo trecho. Parece bem mais velho que eu. Não percebe que o sigo. Por alguns momentos, deliro (deve ser efeito do ar de outro planeta de Brasília): aquele homem poderá ser um duplo-meu, bem mais velho. Nos minutos seguintes invisto no delirio-jogo: persigo um eu-mesmo-mais-envelhecido, num jogo-delírio que me empolga e que me faz caminhar mais rapidamente na tentativa de alcançá-lo. (Mas, merda, não consigo alcançá-lo).
Na altura da 108 Norte, o homem que poderá ser um-eu-mesmo-mais-envelhecido muda inesperadamente de rota. Atravessa o gramado verdejante. Desvia-se entre árvores frondosas - e some. (Sigo em frente novamente sozinho. Vez em quando, alguém cruza-me o caminho, ou me ultrapassa a galope).
No começo da Asa Sul, depois de passar por túneis igualmente vazios e que igualmente remetem a cidades que parecem de outro planeta, ouço orquestras afinadas, e bem-vindas, de bem-te-vis. Louvados sejam.
Depois volto a cruzar com seres de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta, e que eventualmente me encaram como se me perguntassem: - O que faz essa criatura de rosto com traços incertos, que parece vindo de outro planeta, e que me encara como se eu fosse alguém vindo de outro planeta?
Os vendedores de bálsamos-para-a-sede de diversas origens, que comerciam às margens da via aos
domingos e feriados, escafederam-se (como se tivessem sido fulminados por alguma poção letal na madrugada anterior). Mas, como se fosse miragem do deserto de planeta não identificado, avisto a combalida e detonada e bombardeada kombi (que talvez um dia tenha sido marrom; ou azul?) do senhor Francisco. (Trata-se de um paraibano valente que, chova ou faça sol, está sempre ali, na altura da 108 Sul, vendendo doses salutares de água de coco).
Ele me saúda efusivamente (devo ser o primeiro ser vivo que encontra nessa manhã de domingo): - E aí, capitalista? Uma aguinha de coco docinha e geladinha? Trocamos nove ou dez palavras. Pago-lhe R$ 2,50. Enfio o canudinho no coco. Despedimo-nos (ele me deseja boa sorte; eu lhe desejo feliz ano novo).
Vou em frente. Aqui e ali ainda deparo com homens de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta. A partir da 112 Sul, não mais. (Ok, o verde resplandece nas cercanias, e os carros que parecem caminhar sozinhos sem que ninguém os comande não param de circular. No mais não há novamente vivalma ao redor até a 116 Sul. Olho o relógio: 12h25 - e volto a delirar: quem sabe já morri hoje de manhã naquele apartamento do Sudoeste, e o mundo de fato acabou?
O barulho do celular no bolso da bermuda me tira do transe. Atendo: é o amigo querido que me hospeda. Diz que está me esperando na porta do MacDonalds da 114 Sul.
(Ufa!) Felizmente (ou infelizmente; há controvérsias): a vida continua.